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Resenha de “Os Demônios”, de Fiódor Dostoiévski




O que escrever sobre um livro que você passou o ano inteiro lendo? Sim, literalmente um ano inteiro. Certo que não li o tempo todo, houve vários intervalos na leitura, pois para mim 2016 – acho que como para todo mundo – foi um ano cheio de eventos. Mas levei de dezembro a dezembro pra concluir “Os Demônios” – um livro que já estava há vários anos em minha meta de leitura – e até agora não tenho certeza se o digeri completamente.

Esse livro faz parte do “grande pentateuco” (Великое пятикнижие) do Dostoiévski, ou “quinteto grandioso”, como eu prefiro chamar. Trata-se das cinco maiores obras do autor, tanto em tamanho, quanto em magnitude literária, por assim dizer: Crime e Castigo, O Idiota, Irmãos Karamazóvi, O Adolescente e Os Demônios. Este último era o único que me faltava ler e, agora que concluí, posso dizer que ele faz jus ao seu lugar no quinteto grandioso. E também é o mais triste dos cinco (e isso, tratando-se de Dostoiévski, é dizer muito).

Você encontra em “Os Demônios” os mesmos elementos que encontra nos outros quatro grandes livros (e em vários dos pequenos também) e que são quase a marca do Dostoiévski: crime, diálogos profundos alternados com cenas vivas e até cômicas, personagens que querem saltar do papel, o dilema entre fé em Deus e ateísmo, citações bíblicas com relevância na trama, a beleza e a alma humana como objeto de especial atenção e investigação, e… o pessimismo, que ele partilha com quase todos os outros clássicos russos.

(Aliás, uma coisa que eu aprendi quando me habituei aos autores russos é que, nos livros deles, se algo pode dar errado, vai dar. E você assiste tudo caminhando para aquela conclusão inevitável, quer entrar no livro e sacudir os personagens e acordá-los pra evitar a desgraça, mas… não dá. É um determinismo até demasiado, às vezes, mas o incrível é que mesmo assim dá vontade de continuar lendo. Surpreendente).

Mas voltando ao livro. “Os Demônios” tem um elemento que o diferencia dos seus quatro companheiros e que causa sua rejeição como obra artística por muita gente: ele foi escrito com intenções propositalmente panfletárias. O próprio Dostoiévski estava ciente da possibilidade de causar dano à perfeição estética do livro, ao escrevê-lo com esse propósito, mas decidiu correr o risco.

A inspiração para a história veio a partir de um caso real: o assassinato do estudante I. Ivanov por um grupo político niilista liderado por S. G. Nietcháiev, em 1869. O rapaz em questão tinha ligação com revolucionários estrangeiros e russos (incluindo o próprio Mikhail Bakunin), e possuía inclusive mandato do comitê geral de uma organização revolucionária europeia para representar sua seção russa. Usando desse mandato – e possivelmente abusando dos poderes concedidos – ele organizou diversos quintetos políticos em Moscou, formando uma organização chamada Justiça Sumária do Povo, dirigida pelo próprio Nietcháiev com mão de ferro, o que lhe causou atritos com vários membros. Um desses atritos acabou levando ao assassinato de I. Ivanov, que, graças aos desentendimentos, queria deixar a organização.

Dostoiévski acompanhou com muita atenção a cobertura dada à mídia pelo caso, estudando seus pormenores, a personalidade dos participantes – que serviram de modelo aos personagens centrais de “Os Demônios” – e os princípios da organização da Nietcháiev. Esse rapaz baseou o personagem de Piótr Stepanovitch Vierkhovienski, que é, por assim dizer, o grande vilão do livro, apesar de em alguns momentos acabar atraindo – talvez contra a intenção do autor – a simpatia do leitor. 

Mas sobre Piótr falaremos mais adiante; ele e outros personagens merecem uma abordagem separada e detalhada.

O plano simples de representar o caso real em forma de romance acabou sendo engolido no meio de uma obra muito maior. O escritor terminou por retratar e ironizar muito mais gente que ele não gostava – ou, pelo menos, com relação a quem tinha críticas ou desentendimentos: Ivan Turguêniev, copiado no pomposo, presunçoso e falsamente progressista escritor Karmazínov, além de alguns antigos colegas dos tempos de socialismo do próprio Dostoiévski, desenhados no pouco prático – ainda que simpático – Stiepan Trofímovitch Vierkhovienski. Sim, o pai do vilão Piótr, de quem eu falei mais cedo.

E aqui está a grande sacada do livro, e o porquê de eu ter denominado a resenha de o verdadeiro “Pais e Filhos” (li o livro do Turguêniev de mesmo nome e nunca entendi qual a razão desse título): Dostoiévski ligou o surgimento da geração niilista que constituía a juventude da época retratada na história com as atitudes (ou falta de atitude) da geração anterior, os contemporâneos do próprio escritor.

O livro inicia com uma introdução sobre a vida de Stiepan Trofímovitch, basicamente um professor universitário aposentado prematuramente, que agiganta sua própria importância como elemento politicamente perseguido. Ele até teve seus momentos no passado, mas atualmente trabalha como preceptor de Nikolai Vsievolódovitch Stavróguin, filho da Generala Varvara Pietrovna Stavróguina. Com a partida de Stavróguin para níveis de educação superiores, Stiepan continua com a Generala, vivendo às custas dela na qualidade de intelectual (já que a mulher também tem suas vaidades como progressista), mas não passando de um parasita, já que não chega a realmente produzir nada.

Um particular muito interessante da obra é seu narrador. É um narrador-personagem, mas não é nenhum dos protagonistas; trata-se de alguém que só sabemos que é um rapaz amigo de Stiepan Trofímovitch, e que narra a história em parte a partir do que ele presenciou – chegando, em poucos capítulos, a interferir nas cenas – e, em parte, a partir do que ele investigou posteriormente. Sua amizade com Stiepan Trofímovitch também nos leva a concluir pela possível parcialidade do narrador, que talvez tenha sido um pouco leve em sua avaliação do professor, e pegado mais pesado no julgamento de outras pessoas, dependendo da relação deles com o Stiepan. Enfim, são apenas especulações.

Há um motivo importante para a narrativa ter começado com Stiepan Trofímovitch e Varvara Pietrovna. Ao falar deles, o narrador retrata, de passagem, o verdadeiro descuido com que foram educados o filho da Generala, Nikolai, e, principalmente, o próprio filho de Stiepan, Piótr, entregue para umas parentas logo após o falecimento da mãe do menino, e que, se Stiepan encontrou duas vezes na vida depois disso, até que o rapaz apareça na história, foi muito. No seu delírio intelectual, que era mais pose do que atividade real, Stiepan e Varvara negligenciaram a educação dos rapazes, e eles cresceram soltos, entregues à sociedade para tutorá-los, e acabaram se tornando pessoas bastante sinistras, cada um a seu modo.

É muito difícil adivinhar quem ou o quê são “Os Demônios” referidos no título, mas meu melhor palpite é de que são os (ou estão nos) dois jovens principais, Nikolai Stavróguin e Piótr Vierkhoviénski. Pela sua atuação no livro, os dois poderiam ser facilmente comparados, respectivamente, com a Besta e o Falso Profeta. 

Nikolai é a personificação da beleza sedutora, da figura que a todos encanta e que a todos convence, com a sua mera presença ou por diversão, já que não fica muito claro se ele acredita em qualquer das coisas que diz aos outros. Até porque ele convence as pessoas de coisas contraditórias e opostas, como aconteceu com Chátov e com Kiríllov. As pessoas caem de adoração por ele, homens e mulheres, sem que ele nada faça, praticamente, e todos encontram sozinhos justificativas para as suas ações. 

Até sobre Piótr ele tem influência, e provavelmente é a única pessoa que o tem, mesmo que de uma maneira estranha – Piótr tem um misto de fascinação e raiva por Nikolai, a ponto de Stavróguin ser seu calcanhar de Aquiles… o que não o impede de tentar tornar Nikolai objeto e instrumento de suas manipulações. As relações entre eles são estranhas; de início parecem bons amigos, talvez aliados, e esse viés aparece várias vezes ao longo da história, mas com o caminhar do livro descobre-se que Nikolai provavelmente despreza Piótr… como a todos os demais. Você não sabe se ele é bom ou mau ou simplesmente vazio e superficial. Buscamos, por todo livro, as motivações para as ações de Nikolai Stavróguin, para descobrir ao final que ele provavelmente não passa de um jovem endinheirado, egoísta, lascivo, pusilânime e entediado, que não se detém diante de novas culpas, apesar de já ter algumas antigas a afligi-lo.

A comparação de Piótr Vierkhovieski com o falso profeta, por seu lado, se deve ao caráter essencialmente manipulador do personagem. Ele mistura verdade e mentira, sinceridade e falsidade em doses exatas para conseguir seus objetivos. Pode jogar verdades na cara das pessoas – momentos em que até sentimos uma simpatia pela desfaçatez com que ele desmascara os hipócritas – ou deixar escapar alguma coisa propositalmente, ou torcer fatos e sentimentos e criar simulações inteiras para preencher suas finalidades. É tão inescrupuloso quanto Stavróguin, talvez até mais, mesquinho, e, apesar de ter mesmo alguma ligação com socialistas estrangeiros, ele próprio se define como “um vigarista e não um socialista”, e suas ações – inclusive as políticas – visam seu próprio conforto e aumento do seu próprio poder. Seu e de Stavróguin, porque o colega foi incluído no núcleo de comando do mundo louco que Piótr imaginou.

E é esse mundo louco, sistematizado pelo estranho autor Chigalióv, e a estratégia formulada por Piótr para alcançá-lo (para si) que dão o tom sinistro e que alguns consideram profético do romance, já que o sistema prevê uma espionagem de todos sobre todos, e uma igualdade seca para a maioria da população, atingida pela eliminação dos talentos destacados, para garantir a liberdade suprema da classe dominante. Fenômenos muitos semelhantes viriam a ocorrer, posteriormente, na União Soviética – ao menos no período stalinista.

Outros personagens de relevância no livro são as “mulheres de Stavróguin”, por assim dizer, Lizavieta Nikolaievna (e seu pretendente Mavrikii), a coxa e meio louca Mária Timofêievna e seu irmão bêbado Lebiádkin, Dária Pavlovna Chátova e Maria Chátova (respectivamente, irmã e esposa de Ivan Chátov), o governador sensível de origem alemã Andrei Von Lembke e sua esposa dominadora Yúlia Mikháilovna, que cai sobre a forte influência de Piótr, o galé Fiedka Katórjni, e os integrantes do quinteto de Piótr, o jovem oficial Erkel, os funcionários públicos Virguinski (e sua esposa) e Lipútin, Liámchin, e o teórico Chigalióv. 

A resenha se estenderia muito se fosse abordado cada um desses personagens e suas peculiaridades, mas há duas figuras de quem não se pode deixar de falar um par de palavras, já que estão no centro do drama do livro e, junto com Nikolai e Piótr, compõem o quadro que vem de fora e instala o caos na cidadezinha fictícia onde a história se passa. São Ivan Chátov e Aleksei Kirillov. Já os mencionei antes como pessoas influenciadas por Stavróguin em direções opostas. Neles se centra, também, o drama de fé versus ateísmo nesse romance. Coisas aconteceram entre eles no exterior e em São Petersburgo, e uma história que se iniciou lá apenas tem sua continuidade na cidadezinha, de modo que grande parte do mistério do livro gira em torno de entender o que foi que houve antes, do quê essas quatro pessoas estão cientes e que nos é escondido.

Chátov é filho de um servo da casa de Várvara Pietrovna, e ela lhe deu educação. Posteriormente ele arranjou um emprego e vida independente (com o que sua protetora muito se ofendeu). Ele foi casado, mas sua esposa fugiu dele após curto tempo, para viver com Stavróguin. Sabe-se que Chátov foi socialista e niilista, passou algum tempo viajando, mas quando voltou para a Rússia, suas convicções eram muito diferentes das anteriores. Tornou-se eslavófilo e religioso, professando a religião ortodoxa, por sua associação à cultura russa, mas não exatamente crente em Deus. Chátov era o ateu que queria crer.

A origem de Kiríllov, por outro lado, não fica clara. Sabe-se apenas que ele é engenheiro, desconfiado e calado (a maior parte do tempo), e está obcecado com uma ideia fixa que o faz passar as noites acordado, andando pela própria casa e tomando chá. Ele leva o niilismo ao extremo mais absoluto, afirma que tudo lhe é indiferente, todos são patifes, mas isso não importa, e acredita ter descoberto o super-homem: o homem a quem sua própria morte for indiferente, que cometer suicídio não porque está deprimido ou premido por alguma necessidade, mas somente pra mostrar que tem domínio para sua própria vida, se tornará deus. Os próprios personagens o consideram louco e incompreensível, especialmente porque – apesar de afirmar constantemente que tudo lhe é indiferente – ele se porta com mais decência que a maioria dos personagens do livro, pelo menos na maior parte do tempo. Ele está obcecado com provar a não existência de Deus; e, no entanto, acende vela diante do ícone, lê o evangelho para Fiedka Katórjni, age com humanidade, e outros personagens lhe dizem que ele crê, sim, em Deus, no fim das contas. Kiríllov é o crente que queria ser ateu.

Ambas as ideologias que esses personagens abraçaram com tanta força foram-lhes sugeridas, em ocasiões distintas, por Nikolai Stavróguin, e acabam por causar sua ruína – daí se entende o que eu disse antes sobre o poder de influência desse homem, e o porque da minha interpretação de que ele e Piótr são os demônios referidos no título do livro.

O próprio autor, todavia, nos sugere uma explicação mais ampla, dos lábios de Stiepan Trofímovitch. Stiepan pede a uma vendedora de livros religiosos que leia para ele a passagem do Evangelho de Lucas, 8:32-36, que serve de epígrafe ao romance e que narra a história de Jesus expulsando uma legião de demônios de um homem que vivia nos sepulcros, e depois os demônios pedem para entrarem em uma manada de porcos, os quais se precipitam no mar. Quando a mulher atende ao pedido, Stiepan Trofímovitch comenta:

“(...) Acaba de me vir à cabeça uma ideia; une comparaison. Neste momento me vem à cabeça uma infinidade de ideias: veja, isso é tal qual o que acontece na nossa Rússia. Esses demônios, que saem de um doente e entram nos porcos, são todas as chagas, todos os miasmas, toda a imundície, todos os demônios e demoniozinhos que se acumularam na nossa Rússia grande, doente e querida para todo o sempre, todo o sempre! Oui, cette Russie, que j’aimais toujours. Mas a grande ideia e a grande vontade descerão do alto como desceram sobre aquele louco endemoniado e sairão todos esses demônios, toda a imundície, toda a nojeira que apodreceu na superfície... e eles mesmos hão de pedir para entrar nos porcos. Aliás, até já entraram, é possível! Somos nós, nós e aqueles, e também Pietrucha... et les autres avec lui, e é possível que eu seja o primeiro, que esteja à frente, e nós nos lançaremos, loucos e endemoniados, de um rochedo no mar e todos nos afogaremos, pois para lá é que segue o nosso caminho, porque é só para isso que servimos. Mas o doente haverá de curar-se e “se assentará aos pés de Jesus”... E todos ficarão a contemplar estupefatos... (...)”.

Vê-se, então, uma nota de esperança em meio ao tom geral pessimista do livro. Só podemos esperar – com o autor e com o personagem – que todos os miasmas e demônios e maldades acabem expulsos da humanidade, e, ao fim, ela acabe curada e restaurada ao propósito original. 



BÔNUS: A MINISSÉRIE


Em 2014, saiu na Rússia uma minissérie – exibida pelo Primeiro Canal – de quatro capítulos, baseada neste livro, de que tem o mesmo nome.

Eu assisti a minissérie após ler o livro, e achei uma adaptação até boa e bastante fiel da obra, com uma excelente escolha de elenco, em linhas gerais (com destaque para atores que fizeram Stavróguin, Piótr Vierkhovienski, Varvara Pietrovna, Mária Timofêievna e Ivan Chátov, que ficaram muito fieis aos respectivos personagens). Um outro ponto muito bom foi trabalhar a questão do feio segredo às vezes oculto pela beleza, com a fixação de Stavróguin por borboletas – que, salvo esquecimento meu, não existe no livro, mas assentou bem ao enredo.

Por outro lado, a série peca por entregar o mistério do livro logo na primeira cena; ela também tem outro narrador, e a parte da história sobre Stiepan Trofímovitch foi incrivelmente reduzida, a própria presença do personagem ficando meio sem sentido. Ele e o ator de Kiríllov foram escolhas mais dubitáveis... Não captaram a essência dos personagens, na minha opinião; o ator de Kiríllov, em especial, estava exageradamente alegre, enquanto o Kiríllov do livro é meio solene e quase sinistro. Sobre essa questão da redução do papel do Stiepan, cabe dizer que eu fiquei com a impressão de que só entendi bem a série por ter lido o livro; é uma história intrincada, e quatro capítulos não foram o suficiente para captar todas as suas nuances, apesar de estarem lá os principais eventos e até os principais diálogos, mesmo que aglutinados. Assim, é possível que quem não leu o livro fique “boiando” sobre alguns pontos retratados na série.

Outro defeito da série – possivelmente o pior – é um epílogo que inseriram, cinco anos depois, que não tem qualquer lógica e não se encaixa de maneira nenhuma na história original, nem na própria adaptação. 

Mas, balanceando prós e contras, a série ganharia 3 ou 4 estrelas de minha parte, se estivesse no Netflix, e possivelmente eu até recomendaria assistirem. Infelizmente, ela não só não está no Netflix como não tem legenda para português (é possível que nem para inglês, não cheguei a procurar). Companheiros legendadores da internet, hora de fazer sua parte.

Seguem algumas imagens do pôster da série e do elenco.



3 comentários:

  1. Olá! Que maravilha de resenha! Deu até vontade de reler “Os Demônios". Forte abraço e obrigada por compartilhar.

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    1. Oi, Fernanda! Obrigada por visitar o blog, que bom que gostou da resenha! Esse livro é tão forte, nem sei se vou conseguir reler um dia.

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  2. o tempo passou e será que já existe uma versão legendada da série?

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