BLOG PARA DIVULGAÇÃO DA LITERATURA RUSSA AOS FALANTES DE LÍNGUA PORTUGUESA.

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Aviso de temas sensíveis: se você batalha contra a depressão ou pensamentos suicidas, aconselho a não ler a resenha e nem esse livro.


Pôsteres de adaptações cinematográficas: Krótkaia (URSS, 1960), Une femme douce (França, 1969), cartaz polonês do mesmo filme francês, e outro filme francês de 2017.


Li A dócil pelo menos umas três vezes nos últimos meses e, em todas elas, fiquei acabrunhada. É uma história fenomenal em termos de qualidade e na profundidade dos pensamentos que explora, mas também é uma das mais tristes que já li na vida, e olha que a competição é ampla. Tento penetrar nos motivos de esta novelinha superar até tijolões sobre grandes tragédias, e não é tão fácil. Talvez seja porque, mesmo em meio a grandes tragédias, um ou outro ato de bondade se sobressai. Ou porque, quando o vilão de alguma história é incontestavelmente ruim, conseguimos nutrir por ele apenas raiva. Lendo A dócil, porém, o narrador e grande infrator da história acaba nos suscitando uma gotinha de pena em meio à indignação e à repulsa. Além disso, há uma forte sensação de que a forma desgraçada como a história se desenvolveu era evitável — e até sabemos como, é fácil visualizar os erros. Acima de tudo, porém, o enredo parece muito mais prosaico que as grandes desgraças — e, por isso, mais palpável, cotidiano, mais próximo de nós. Pode estar acontecendo agora mesmo em tantas casas por aí no mundo inteiro, em tantas relações, em maior ou menor grau.

Publicada em 1876, no lugar da edição de novembro de Diário de um escritor — revista mensal que Dostoiévski editava sozinho nos anos de 1876-77 e 1880-81 —, A dócil foi inspirada por um acontecimento real que impressionou muito o autor: uma costureira, desesperada por não arranjar trabalho, suicidou-se pulando da janela abraçada a um ícone, isto é, uma pintura de santo da igreja ortodoxa. O escritor já tinha comentado esse incidente em um artigo publicado anteriormente no Diário (edição de outubro), chamado Dois suicídios, em que compara o caso com o suicídio da filha do socialista Aleksandr Herzen, ocorrido em Paris.

Edição de janeiro de 1876 do Diário.
O impacto do caso não passou com a publicação do artigo, e Dostoiévski se aproximou dele pela ficção, como frequentemente fazia quando sentia precisar de uma abordagem mais abrangente que um texto discursivo para demonstrar todas as nuances de uma situação.

A história gira em torno da uma moça que, encontrando-se em uma situação para a qual não via saída, à semelhança do caso-inspiração, cometeu um suicídio “resignado” (na avaliação de Dostoiévski), agarrada a um ícone da Virgem Maria. Gira em torno é a expressão precisa, porque não se pode considera-la personagem atuante. O livro consiste em um monólogo do marido dela, que anda pelo apartamento falando sozinho de forma incoerente, rememorando a história deles e tentando entender por que a esposa — que jaz sobre a mesa, sendo velada — chegou a esse ponto. Dostoiévski nos pede para imaginar que um estenógrafo estivesse seguindo esse marido e anotando o que ele balbuciava. Tais anotações, posteriormente trabalhadas pelo escritor, seriam o conteúdo da novela que, pela particularidade da forma, ele batiza de “relato fantástico”, apesar de considerá-la com justiça altamente realista quanto ao resto.

Em dois capítulos divididos em mais ou menos cinco subtítulos cada, o narrador nos conta como conheceu sua esposa, como eles se casaram e como era o casamento até o dia fatídico. Também fala um pouco do passado de ambos. O foco da narrativa não está de modo algum, porém, na pessoa ou nos sentimentos da esposa, e sim no próprio narrador. Em como ele pensou, no que ele falou, como se sentiu, e até o que adivinhou — ou não — dos sentimentos da dócil. Acabamos por saber bem pouco de objetivo sobre ela: tem dezesseis anos, aparentando menos, olhos grandes, cabelos loiros, estatura média-alta, é órfã, pobre, era maltratada pelas tias, tinha algum estudo e buscava um emprego para escapar da opressão das parentas. Da avaliação do marido e do relato dos acontecimentos, podemos depreender, ainda, que ela é bondosa, batalhadora, ingênua, íntegra, orgulhosa, mas capaz de tentar "fazer limonada" com os limões que a vida lhe dá, isto é, resignar-se e extrair o melhor de situações desagradáveis inevitáveis. Sua força interior é gigantesca, porém a pressão a que ela está submetida acaba sendo muito maior.

Ilustração para A dócil, de Dostoiévski. O. Markina.

E essa pressão, que já vem desde a orfandade e a casa das tias, só se agrava com o casamento.

Quanto ao casamento, é até difícil começar a apontar tudo que há de errado nele e no próprio “amor” do narrador pela esposa que, conquanto pareça ser sincero até certo ponto, está tão deturpado pela sede de poder que mais parece ódio e produz efeitos de ódio. Contemplar a relação deles, ou antes, a condução dessa relação pelo marido, é praticamente uma lição do que não fazer.

Nem se precisa dizer que o comportamento dele em relação à moça tem, desde o início, vários traços dos pilares do machismo na nossa sociedade, em especial a relação com o dinheiro, que permeia cada pontinho do relacionamento dos dois. Parte dessa atitude se deve, talvez, à profissão do personagem e à sua atitude geral em relação ao poder do dinheiro, com o qual busca, entre outras coisas, resgatar sua reputação e “vingar-se da sociedade”. Porém, os cálculos dele são corriqueiros demais para que se possa atribuí-los à sua profissão de penhorista.

Ele a trata como propriedade desde o momento em que está “avaliando a compra”: faz pesquisas, cálculos de custo-benefício (ele sai no lucro ao adquirir uma esposa jovem e bonita por preço barato, porque ela não tem muitas opções), computa meticulosamente cada centavo que gastou com ela e a trata como propriedade, o que vemos pelas regras rígidas a que ela é submetida desde que entra na casa dele, sendo proibida até de sair dali sozinha. E, quando pensa que a esposa o traiu, ele leva um revólver para o local onde devia flagrá-la com o suposto amante, mesmo alegando não ter acreditado por um segundo na traição dela. Acreditando ou não, sentia-se em pleno direito de matá-la e estava preparado para fazer isso se ela se provasse culpada. Afinal, ela era propriedade dele: podemos destruir, se quisermos, um produto que compramos com defeito. Tudo, absolutamente tudo isso é normal ainda hoje, cento e cinquenta anos depois, às vezes em contextos diversos, com mais ou menos disfarce...

Reduzir a mensagem do livro a “machismo é ruim”, porém, além de anacrônico, é minar o potencial e a profundidade desse texto e de tudo o que ele explora. O que Dostoiévski aborda transpassa o âmbito das relações entre homens e mulheres e, conquanto se manifeste com especial força em relações amorosas, pode aparecer em qualquer dinâmica interpessoal que envolva afeto, como uma relação familiar ou de amizade.

Liza vai embora. Iliá Glazunov, 1983.
O próprio Dostoiévski, nas suas anotações, caracteriza o narrador de A dócil como um tipo “do subsolo”. Quem leu Memórias do subsolo e se lembra do jeitão do narrador daquele livro conseguirá entender muita coisa sobre o marido da dócil só por essa caracterização. O principal ponto em comum entre eles é o alto conceito que ambos fazem de si mesmos, que redunda em um ressentimento arraigado contra a sociedade por não reconhecer o valor deles. Por causa desse sentimento, eles se voltam ainda mais para dentro de si, passam a conceber o mundo como uma eterna competição em que o único objetivo é estar por cima e, assim, tornam-se incapazes de amar. Todo sentimento amoroso que nasça neles está contaminado pelo desejo de dominar e destruir. O homem do subsolo confessa não ter amigos porque, sempre que arranja um, tenta torna-lo em seu escravo; mais tarde, volta seus impulsos de conquista, poder e destruição para a prostituta Liza. 

O narrador de A dócil, por sua vez, encontra uma criatura que enxerga como melhor que ele — pois por pessoas piores ele, naturalmente, não se interessa — e desde o começo se esforça para reduzi-la, a fim de conquista-la, dominá-la... sem perceber que, com isso, prepara a destruição dela. Ou antes, ele até percebe, ele a quer moldável, sujeita, aniquilada — mas presente e amando-o.

Mas, ao introduzi-la em casa, eu pensava estar introduzindo um amigo, eu precisava demais de um amigo, mesmo. Mas via claramente que era preciso preparar, aprimorar e até vencer o amigo.

Só muito tarde percebe que preferiria tê-la livre, mas viva e feliz. (Se é que esse impulso duraria no cotidiano, se é que tais palavras não eram promessas vazias da culpa).

Em tal dinâmica de introspecção e controle, muita coisa importante acaba sendo estupidamente deixada de lado. Uma imagem ideal da relação é concebida dentro da cabeça do marido e ele se põe pacientemente a executá-la, ignorando presunçosamente os sinais contrários porque mediu de antemão as forças com as da moça e sabia que ela era vulnerável. Essa imagem ideal é egocêntrica, como o próprio narrador, e não considera as necessidades emocionais da dócil nem por um instante. Ele exige dela façanhas de heroína de romance sem que se lhe dê nenhum material para isso, suprindo-lhe apenas as necessidades físicas e olhe lá. Quer que ela adivinhe que ele é bom e sofredor e se humilhe diante da grandeza dele. E isso faz com que ele cale e mostre frieza. Nem sequer se digna a comunicar o que espera dela. Responde com frieza aos impulsos amorosos da parte dela, que, mesmo sem amá-lo quando do matrimônio, resolveu esforçar-se por amá-lo no começo. Mas essa chama ele apaga com baldes de água fria, porque não é exatamente como ele quer. Não, primeiro ele tem que vencê-la. E, quando consegue subjugá-la e o silêncio se instala entre eles, ele considera bom sinal. Confessa que está gostando tanto de sua condição de vencedor que não tem pressa de tentar restaurar o relacionamento.

Em suma, eu adiava o desenlace de propósito: aquilo que ocorrera era mais do que o suficiente por enquanto para a minha tranquilidade e continha quadros e material até demais para os meus sonhos. Nisso é que está a nojeira, em eu ser um sonhador: da minha parte, o material bastava, e sobre ela eu pensava que esperaria um pouco.

Só que o amor não se sujeita ao controle. Requer boa-vontade e esforço mútuo, sensibilidade para perceber a marcha natural dos acontecimentos e não “espantar a borboleta”, o encorajamento de expressões espontâneas de carinho e a disposição de se mostrar vulnerável. Floresce com o estímulo para que o outro cresça e se multiplique, e não que se reduza para caber no nosso bolso.

Com suas ideias deturpadas, o narrador não estava em condições de perceber isso. Bêbado de triunfo, crente de que a derrota moral da esposa no incidente com o revólver (quem leu, entenda) garantira para si a admiração e o consequente amor dela, ele demora a se dar conta de que não resta nem tentativa de amor por ele no coração da mulher. Que ela se resignou à situação em que vive, e só. Quando percebe, despenca no extremo oposto: vai da tranquilidade arrogante à humilhação perturbada, em uma tentativa desesperada de impedir o claro desmoronamento de seus planos.

Será que se sentiu vencido quando ela se resignou, e, por isso, sua paixão se inflamou mais? Afinal, o amor, para ele, era um jogo de poderes. Seja como for, ele tenta recuperar o controle da situação. Recua suas exigências, concorda em mudar de vida para uma que a agradaria mais (novamente, sem perguntar o que ela queria de fato ou lhe dar uma voz no assunto), e a sufoca com tanto sentimento acumulado que ela não está em condições de administrar. Incapaz de reajustar a vida novamente para incorporar essa exigência implícita de afeto, ela toma a decisão extrema.

E aí vem o livro.

É impressionante o quanto ela sofre. É impressionante a burrice do marido, que acaba por isolá-lo. É impressionante o desenrolar progressivo e plausível de tudo, em que cada detalhe, inclusive na forma, contribui para a perfeição da obra. E, para coroá-la, Dostoiévski conclui:

A inflexibilidade! Oh, natureza! As pessoas estão sozinhas sobre a terra — eis a desgraça! “Será que há um homem vivo no campo?” — grita o bogatyr russo. Grito eu também, um não-bogatyr, e ninguém responde. Dizem que o sol vivifica o universo. O sol sairá e — olhem para ele, acaso ele não é um cadáver? Tudo está morto, e por toda parte há cadáveres. Só as pessoas, e em torno delas, o silêncio — eis a terra! “Homens, amai-vos uns aos outros” — quem disse isso? de quem é esse mandamento? O pêndulo bate de um jeito insensível, repulsivo. Duas horas da manhã. As botinhas dela estão junto da caminha, como se a esperassem... Não, sério, quando a levarem amanhã, o que é que eu serei?

Recomendo, sem dúvida recomendo o livro. Mas é preciso estar em um bom estado mental para lê-lo.

Dostoiévski, retrato de Mikhail Grigórievitch Roiter (1916–1993).



Um comentário:

  1. Perfeita resenha, ainda possuo inúmeras dúvidas sobre o motivo fulcral para a morte da dócil, farei o que você fez, lerei novamente, o livro, apesar de pequeno, é extremamente fantástico

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