BLOG PARA DIVULGAÇÃO DA LITERATURA RUSSA AOS FALANTES DE LÍNGUA PORTUGUESA.

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Quando você começou a traduzir e qual foi a sua trajetória de vida que te direcionou para esse ofício? 

Começou completamente por acaso. Em 2006, quando se comemoraram os 250 anos de nascimento de Mozart, dei vários cursos e palestras sobre o tema, e comentei por acaso, em uma mesa de bar, que tinha feito uma tradução para uso doméstico da peça Mozart e Salieri, de Púchkin. Estava presente na ocasião uma amiga, que era assessora de imprensa da Editora Globo. Ela se ofereceu para mostrar o trabalho na editora. Os responsáveis gostaram, e assim surgiu a encomenda para minha primeira tradução: Pequenas Tragédias, de Púchkin, incluindo Mozart e Salieri e as outras três peças que ele escreveu na mesma época. 


Você tem uma relação profunda com a música, especialmente a música clássica, atestada pelo seu livro 
“História concisa da música clássica brasileira” (Alameda, 2018). Em algum momento essa paixão se entrecruza com a tradução? Se sim, como ocorre esse intercâmbio? 

Gostaria de imaginar que uma coisa ajuda a outra. Porque o executante de uma obra musical também é um intérprete, que decodifica uma partitura e transmite-a para o ouvinte. No caso da música clássica, inclusive, há um pacto de fidelidade: o ouvinte espera que aquilo que o intérprete está tocando seja mesmo, digamos, o que Beethoven escreveu, da mesma forma que o leitor espera que aquilo que ele está lendo seja mesmo, digamos, o que Tolstói escreveu. Levo a analogia mais longe para dizer que, assim como não há gravação “definitiva” de uma obra musical, tampouco há tradução “definitiva” de uma obra literária. A Nona de Beethoven é única, assim como Guerra e Paz, de Tolstói; mas o número possível de interpretações tende ao infinito. 

Você já traduziu vários autores, tanto consagrados, como Tolstói, Púchkin e Bulgákov, quanto alguns menos conhecidos, como Vladímir Zazúbrin e Vassíli Grossman. Qual autor ou qual texto foi mais desafiador para você e por quê? 

Editora 34, 2017.
Não existe tradução literária fácil. Eu diria que Vida e Destino, de Grossman, pelo tamanho, pela amplitude do campo semântico, e por minha própria inexperiência na época (nunca tinha traduzido um livro tão grande), além das circunstâncias pessoais complicadas que eu estava atravessando, foi um trabalho particularmente sofrido. Em O Mestre e Margarida, tive minha casa invadida e assaltada, e o computador levado pelos ladrões. Diferentemente do que imaginava, não tinha feito o backup adequado do trabalho, e tive de recomeçar do zero, quando já havia realizado 40% da tarefa. Isso também foi doído. 

Sua tradução de “Lasca”, do Zazúbrin (Carambaia, 2019), foi a primeira tradução desse livro no Brasil, não é? Qual é a sensação de ser o primeiro a traduzir um texto inédito no país? 

Eu não me sinto dono nem dos autores, nem das obras que traduzo. Sinto-me honrado por ter merecido a confiança da Carambaia para a empreitada. Eu, por acaso, já conhecia o livro, por uma tradução portuguesa, mas a ideia de traduzir e publicar a obra foi da editora. O mérito do pioneirismo é todo da Carambaia.

Qual autor ou obra você gostou mais de traduzir? Por quê? 

Trabalho para mim é um troço cansativo, e que acaba destruindo qualquer relação de prazer que eu tenho com o tema, seja em literatura, seja em música. 

Se tivesse que escolher apenas uma obra, dentre todas as que traduziu, para indicar como leitura “obrigatória” aos apreciadores de literatura russa, qual seria? 

Não é do meu feitio empurrar nada goela abaixo de ninguém – ainda mais trabalho meu. O que mais se conhece de literatura russa no Brasil é Tolstói e Dostoiévski, então talvez esses autores encabecem uma lista de “obrigatórios” por aqui. Já os traduzi, como tanta gente, felizmente, o fez, e nenhum leitor é meu “refém” para ter acesso a eles. 

Na sua opinião, qual a maior dificuldade em traduzir do russo? Vocabulário, cultura...? 

Quanto mais afastadas uma língua e uma cultura se encontram da nossa, maior a dificuldade de tradução. Verter de uma língua concisa como o russo para um idioma prolixo como o português não é simples. Os dois problemas que você indicou estão relacionados: a distância cultural se reflete nas dificuldades de vocabulário. Especificidades da língua russa, como a ausência de artigos e as peculiaridades do verbo, que funciona numa lógica absolutamente distinta do português – incluindo o uso alucinante dos tempos, e o mundo à parte dos verbos de movimento – colocam desafios renovados a cada instante. Enfim, traduzir do russo é um exercício constante de humildade – para não dizer de humilhação. 

Como transpor o registro de uma personalidade russa para o público brasileiro? Quais são as dificuldades que esse desafio em particular apresenta? 

Minha esperança é decodificar as estratégias do escritor para descrever essa personalidade, e recriá-las em nosso idioma. Eu não tenho a pretensão de traduzir personalidades – mas tento traduzir textos. Então, para mim, a questão é tentar compreender como essa personalidade surge no texto, e reescrever esse texto em nosso idioma. 

A que estratégias você recorre quando precisa traduzir expressões típicas do russo para português? 

Provérbios perdem o sabor se traduzidos literalmente. Procuro equivalentes, a menos que a tradução literal seja necessária para o desdobramento do texto (por exemplo, quando, se for um diálogo, na fala seguinte um personagem responde se referindo ao significado literal da frase). Com trocadilhos acontece a mesma coisa. Tradução literal + nota de rodapé, só em último caso, pois explicar a piada é matar a piada. Ao mesmo tempo, devemos buscar equivalências que não soem esdrúxulas no contexto original. Outro dia, por exemplo, fiquei tentado a definir um rapaz namorador como “lambari” (infelizmente não me lembro da palavra original), mas desisti; esse peixe, pelo que me consta, não nada nas águas da Rússia. 

Que materiais (dicionários, glossários, enciclopédias, etc.) são seus maiores aliados na hora da tradução? 

Alfaguara, 2014.
Uso uns dicionários físicos, que recomprei mais de uma vez, pois se desfizeram com o uso. Sou do tempo analógico, e bastante ignorante no uso de ferramentas digitais. Yandex e Google, de qualquer forma, são aliados importantes. Sem recorrer a eles, e às enciclopédias virtuais da internet, eu não teria conseguido traduzir, por exemplo, Vida e Destino, e minha carreira muito provavelmente teria se encerrado ali. 

Quanto tempo se leva, em média, para traduzir uma obra? 

Depende da obra e do tradutor. Velocidade não é garantia de nada. Lerdeza tampouco. O importante é se esforçar ao máximo para cumprir os prazos – e, quando isso não for possível, ter transparência na comunicação com a editora. Não seja aquele/a tradutor/a que some, não dá notícias e não entrega o serviço. 


Um tradutor consegue se manter apenas com esse trabalho? 

Um, que não este que vos fala, talvez consiga. Eu não consigo. 

As traduções brasileiras são fiéis ao russo? 

Cada caso é um caso. Há traduções em número grande demais para permitir generalização. Mas creio que a tendência geral seria no sentido de um esforço pela máxima fidelidade. 

Editora Globo, 2007.
Por que há tão poucas traduções de escritores russos contemporâneos? 

Porque a tradução de autores contemporâneos envolve um custo adicional, que é o pagamento de direitos autorais. Apostar nos clássicos é mais barato e mais seguro, do ponto de vista comercial. 

Qual o melhor método de aprender russo? 

Creio que os melhores métodos para aprender qualquer língua são nascer em um país em que ela é falada, ou residir bastante tempo nesse país. Não nasci na Rússia, e passei lá períodos breves, não muito superiores a três meses. Portanto, esses não foram meus métodos, o que não me qualifica para responder adequadamente. Tentei me virar do jeito que deu. 

Em quantos anos uma pessoa pode se tornar fluente em russo? 

Depende muito de como a pessoa empregar esses anos. Comecei a estudar em 1987, e não sei se posso ser considerado fluente – nem acalento esperanças ou ilusões de vir a sê-lo. Isso diz mais sobre minhas insuficiências e meu emprego pouco produtivo do tempo do que sobre a dificuldade do idioma (que é distante e difícil para o falante do português). Novamente, não sou a pessoa mais qualificada para responder.

***


Foto por Rodrigo Monteiro
Irineu Franco Perpétuo
 é tradutor, jornalista e crítico, colunista da revista Concerto. Além do russo, fala inglês, francês, alemão, italiano e espanhol, idiomas que estudou no colégio, em centros de línguas ou de forma autodidata. Seus principais trabalhos se concentram nas áreas de literatura e música clássica. Entre suas muitas traduções do russo estão diversas obras de Púchkin (Pequenas tragédiasBoris GodunovA filha do capitão e A dama de espadas), Bulgákov (O mestre e Margarida e Os dias de Turbin), Vladímir Zazúbrin (Lasca), Vassíli Grossman (Vida e destino e A estrada), entre outros autores. Irineu também já traduziu obras de Rudyard Kipling, Nathaniel Hawthorne e outros escritores anglófonos, para a coleção Inglês com Clássicos da Literatura, da Folha. Para outra coleção da Folha, redigiu vários livretos biográficos sobre os mestres da música clássica mundial. Seu trabalho com a música rendeu ainda os livros Cyro Pereira — Maestro (DBA Editora, 2005) e História concisa da música clássica brasileira (Alameda Editorial, 2018), além do Populares & Eruditos (Editora Invenção, 2001), em coautoria com Alexandre Pavan. 

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