BLOG PARA DIVULGAÇÃO DA LITERATURA RUSSA AOS FALANTES DE LÍNGUA PORTUGUESA.

Post Page Advertisement [Top]

 Como uma adaptação pode levar uma obra do épico ao patético com pouquíssimas, mas cruciais mudanças

 


Recentemente reli Tarás Bulba, uma novela russa de Nikolai Gógol que já foi traduzida algumas vezes para o português desde o início do século passado e também foi alvo de várias adaptações cinematográficas. Uma das adaptações mais recentes é o filme russo homônimo de 2009, dirigido por Vladímir Bortko, que assisti logo após a leitura e, por isso, tinha a obra fresca na cabeça para comparar. Há quem se oponha totalmente à ideia de comparar adaptações com a obra original, já que mídias diferentes nunca serão perfeitamente intercambiáveis. Mas sou da opinião de que, se o cinema quer recontar uma história já estabelecida, que o faça direito.

Não posso dizer que tenha sido o caso do filme mencionado acima. O interessante é que há diálogos e até trechos da narração reproduzidos ao pé da letra como está no livro. Ou seja, a obra claramente mirava na fidelidade: poucos são os casos de remoção de cenas, personagens, motivos, que é o que costuma estragar muitas adaptações. Em Tarás Bulba, porém, o problema reside nas pequenas coisas em que o filme pôs a mais, em relação ao que o autor tinha delimitado.

Porém, para poder explicar melhor onde ocorreu o tropeço, é preciso conhecer a obra original.

 

O LIVRO

Tarás Bulba” é uma novela de ficção histórica publicada pela primeira vez em 1835, na coletânea Mírgorod, uma das primeiras obras de Gógol a vir a público. Nascido e criado na Ucrânia, então região integrante do Império Russo, Nikolai Vassílievitch Iánovski, de pseudônimo Gógol, utilizou pesadamente as tradições, o vocabulário, o colorido e a História da sua região nestas suas obras iniciais, o que causou a recepção mista dela pela sociedade literária mais estabelecida da capital São Petersburgo. O livro não foi um sucesso de vendas, mas recebeu boas críticas.

Mais tarde, após lançar outras obras que fizeram mais sucesso, Gógol retrabalhou as novelas de Mírgorod, e “Tarás Bulba” foi relançada em 1842 em nova redação significativamente modificada e ampliada, com três capítulos a mais e considerável suavização do vocabulário e do nacionalismo ucraniano, que deu lugar a um texto menos regionalizado e a um nacionalismo pan-russo centrado na fé ortodoxa, em vez de na Pátria ucraniana.

Esta segunda versão de Tarás Bulba foi a que se consolidou, e a que eu reli. 

A novela se passa em meados do século XV, período em que o território da Ucrânia, bem como o de Belarus, pertencia à República das Duas Nações, uma aliança monárquica entre a Polônia e a Lituânia. Entre outros grupos populacionais que habitavam aquele território na época, como os judeus, o destaque cabe aos cossacos, homens de origens diversas unidos não tanto pela proveniência étnica ou comunidade de classe ou profissão, mas pela adesão voluntária a um modo de vida peculiar do grupo e à fé cristã ortodoxa. Os cossacos eram um misto de bandoleiros e mercenários que se uniam para farrear e para lutar, mediante paga ou pelos despojos, ou ainda por uma causa comum. Eles não habitavam somente a Ucrânia: grupos cossacos existiam no Cáucaso e outras regiões da Rússia. Sua vida era regrada por uma hierarquia militar semirrígida, mas ao mesmo tempo democrática, cujas instituições são pinceladas em cenas do livro.

O livro, porém, centra-se na figura de um cossaco de meia-idade — Tarás Bulba — e de seus dois filhos, Ostáp e Andriy, dois rapazes que acabaram de sair do seminário em Kíev, para o qual tinham sido enviados para receber alguma instrução formal. No capítulo que abre o livro, os dois rapazes estão chegando em casa após longos anos no internato. São recebidos por seu pai com zombarias, sendo que o mais velho, Ostáp, provocado, reage e sai no soco com o pai, enquanto o mais novo vai cumprimentar a mãe. Esse início de livro já marca o temperamento dos dois rapazes, e torna difícil refrear o paralelo com Esaú e Jacó, o primeiro, mais másculo, preferido pelo pai Isaque, e o segundo, caseiro, pela mãe Rebeca (Gênesis 25:27).

Bulba, porém, é mais inquieto que qualquer dos filhos. Agora que eles retornaram do ensino intelectual e espiritual — recebido pelos cossacos por tradição, apesar de o considerarem inútil —, ele está louco para levá-los para aprender a ciência que importa para um cossaco: a ciência da guerra. Para tanto, decide mandá-los para a Sitch da Zaporíjia — o principal acampamento cossaco — na semana seguinte. Após uns copos de vodca, resolve ir junto e adianta a viagem para o dia seguinte, para desespero da mãe dos rapazes, que mal teve tempo de vê-los após a longa separação.

Tarás chega orgulhosamente com seus filhos à Sitch, cumprimenta os velhos amigos, banqueteia-se um pouco, mas se inquieta lá também, pois quer que os filhos provem a guerra de verdade, e o momento é de paz com todos os inimigos: há acordo com os poloneses, trégua com o sultão turco, e os tártaros não estão por perto. Bulba não se contenta com a situação, embebeda os companheiros e semeia a discórdia, manipulando para que seja eleito como novo comandante geral um velho amigo dele, que concorda em mandar os rapazes para “farrear” em umas escaramuças no litoral da Anatólia. Quando estão todos se preparando para isso, outros cossacos chegam com notícias bombásticas de opressões sofridas pelos ortodoxos sob o domínio polonês, e toda a Sitch da Zaporíjia decide sair para vingar essas opressões.

Deixando um rastro de terror por onde passam, eles chegam à cidade de Dúbno e a sitiam por vários dias. Não conseguem tomar a fortaleza, mas não deixam ninguém sair. É nesse momento, porém, que o destino da família de Bulba dá uma guinada para a tragédia, pois, entre os poloneses definhando na cidade, está a filha do voivoda (mistura de prefeito e general), velha conhecida de Andriy, cuja beleza ele já tivera ocasião de admirar de perto. Ela envia uma criada para pedir comida ao jovem cossaco, ao reconhecê-lo entre os atacantes. Andriy acompanha a criada para dentro da cidade por uma passagem secreta, se depara com os horrores das pessoas morrendo de fome ali, e encontra a nobre polonesa, cuja beleza e tristeza o dominam e o fazem renegar a Pátria, o pai e os camaradas, jurando defendê-la com a própria vida.

Enquanto Andriy está dentro da cidade, chegam reforços poloneses que penetram na fortaleza após matar e aprisionar uma das tropas cossacas que dormia, bêbada, perto de um dos portões. Ao mesmo tempo, chegam notícias de que a Sitch da Zaporíjia fora invadida por tártaros, os poucos cossacos que tinham ficado lá, aprisionados, e até os tesouros enterrados dos cossacos tinham sido saqueados. Os cossacos no cerco a Dúbno se veem em um impasse: partir e resgatar os companheiros levados pelos tártaros, abandonando o sítio, ou ficar e tentar derrubar a cidade e resgatar os companheiros aprisionados pelos poloneses?

Ilustração para Taras Bulba, de Piótr Sokolov, 1861.
Após uma assembleia, decidem se dividir, e o comandante geral parte com metade dos homens; a outra metade fica ali sob o comando de Bulba — que já dera pela falta de Andriy e tivera notícias suas, mas não queria acreditar nelas. Bulba prepara e anima seus homens para a batalha, que é iminente, pois os poloneses não tinham comida o bastante para os citadinos e os reforços, e, além disso, não conseguiam resistir à provocação dos cossacos.

De fato. A batalha ocorre quando os poloneses percebem que os cossacos estão com números reduzidos. Horrores e façanhas de ambos os lados são descritos de forma épica pelo autor. Nessa batalha, Bulba perde os dois filhos, de maneiras diferentes, antes de apagar.

Acorda no capítulo seguinte, resgatado por um companheiro, que o carrega na fuga e cuida das feridas dele. As feridas internas, porém, Bulba não consegue curar. Só quer saber do filho cativo dos poloneses em Varsóvia. Quer resgatá-lo, ou pelo menos vê-lo. Para isso, recorre à ajuda do judeu Iankel, cuja vida ele salvara dos outros cossacos em um pogrom. Iankel e seus amigos bolam um plano para introduzir Bulba na prisão, disfarçado de nobre estrangeiro curioso para ver um cossaco, a fim de que ele possa falar com o filho nas vésperas da execução deste.

O plano falha, por causa de um guarda traiçoeiro, e Bulba e Iankel mal conseguem escapar ilesos.

Bulba assiste à execução do filho, desaparece, e reaparece depois no último capítulo, coronel sob o comando de outro em uma revolta geral dos cossacos contra o domínio polonês. A paz negociada com os poloneses acuados, porém, não é aceita por Bulba, ele rompe sua parceria com os outros cossacos e vai embora com sua própria tropa e os outros cossacos que decidem acompanhá-lo, para continuar a aterrorizar e barbarizar as terras inimigas. Na sua sede de vingança pelos filhos, não poupa mulheres nem bebês.

Põem sua cabeça a prêmio e acabam por capturá-lo, em um incidente e por um motivo até tosco: ele se detém no meio da fuga para recolher um cachimbo — não quer deixar nadinha para os poloneses. Enquanto o executam, consegue, porém, gritar instruções de fuga para sua tropa, que escapa e segue pelo rio Dniéstre, comungando com a natureza local e rememorando o comandante.

 

O FILME



O filme é quase a mesma coisa. Quase.

Bulba, porém, está diferente. Uma diferença sutil, mas crucial: ele tem motivação.

Ele não vai para a Sitch e depois articula um golpe para insuflar a quebra da paz com o sultão porque está entediado: não, ele está traumatizado. Flashbacks de um mercado de escravos o assombram periodicamente ao longo do longa. Depois, os inimigos invadem a aldeia dele e matam a esposa dele, cujo cadáver os camaradas vêm depositar aos pés do herói. A esposa que, no começo do filme, ousara jogar um balde d'água em Bulba para detê-lo quando ele sai no soco com o filho mais velho — e que, por essa ousadia, não recebe nenhuma repreensão.

Para quem conhece o Bulba do livro, tudo isso soa extremamente falso.

A relação dele com a esposa, muito característica da época e do meio em que se passa a história, é marcada por desprezo, tirania e senso de superioridade da parte dele. A esposa “é só uma mulher”, só fala besteiras e choraminga, não é companhia que o valha, ficar junto dela, para ele, é se reduzir e se humilhar. O único respeito que ele lhe presta no livro é enquanto mãe, ao mandar que os filhos lhe peçam a benção quando estão partindo para o acampamento cossaco, e isso somente com uma função quase cerimonial ou simbólica, pois, segundo sua crença tradicional, a benção da mãe do soldado pode favorecê-lo. É a figura mítica da mãe que ele respeita momentaneamente na esposa, e não a pessoa dela, ou mesmo sua função como esposa. Como esposa, ela serviu para a satisfação sexual dele enquanto era jovem, por algum tempo, para gerar seus descendentes e criá-los até certa idade. E também o serviu como empregada doméstica a vida inteira. Nenhum desses papéis lhe garante importância aos olhos dele.

Será que ele se iraria ao vê-la morta e buscaria vingança? Com certeza, mas porque isso seria um ataque contra as posses dele, que são uma extensão da sua pessoa. A mesma fúria seria despertada se os poloneses ou turcos ou tártaros lhe roubassem uma ovelha... ou um cachimbo.

O problema é que Bulba não precisa dessa motivação para querer guerra contra “os pagãos”, não precisa de motivação nenhuma. Já tem a motivação pré-existente de ser cossaco e considerar que esta é a vida adequada para um cossaco, a eterna guerra em defesa (difusa) da fé ortodoxa.

Tentar aprofundar Bulba o planifica, ameniza o impacto que os acontecimentos trágicos que o atingem causam em nós. Porque a grande questão de Tarás Bulba é que sua tragédia nos move e emociona mesmo sem concordarmos com suas ações, mesmo sem o considerarmos um bom homem. Ao contemplar sua dor por Ostáp, mais para o final do livro, não questionamos sua parcialidade, não criticamos suas decisões irrefletidas, e tampouco aprovamos a fúria da vingança em que ele se lança mais tarde. Naquele momento, apenas padecemos com ele sua tristeza, pois a profundidade dela vibra cordas muito fundas em nossos corações, cordas inerentemente humanas, que soam ainda mais belas porque a compaixão é despertada por alguém que não a merece.

Sem isso, ele se assemelha a qualquer herói Hollywoodiano de passado trágico, homem justo, mas endurecido pela vida, cujas ações negativas são meras reações a uma realidade cruel. Uma história saturada que nada mais faz que justificar a maldade e baratear a compaixão.

Outro ponto do filme que merecia melhor tratamento é a relação entre Andriy e a nobre polonesa. Conquanto seja, talvez, mais fiel que a retratação de Bulba, ela começa de forma estranha, com a nobre disparando a rir antes do incidente que, no livro, provoca o acesso de riso; continua de forma meio inexplicável; e, no fim, se precipita com o anacronismo de uma noite de sexo que não parece provável de acordo com o livro, já que o casamento entre os dois estava ajustado para depois de uma vitória contra os cossacos, e Andriy não estava incógnito na casa da polonesa: o pai, a mãe, os guardas e servos dela sabiam que ele estava ali. Olhos demais para garantir a privacidade necessária para relações íntimas. E a própria situação de cerco e fome também as dificultaria. Se os produtores queriam inserir cenas sensuais para agradar o gosto do público moderno, que o fizessem explorando os devaneios eróticos do Andriy adolescente, que já sonhava com uma mulher nua antes de conhecer essa moça que o conquistou. Isso evitaria a tosca cena, ainda em Kiev, em que ela está se olhando no espelho seminua, sabe-se lá por que, quando ele chega. Cena que, no livro, é muito mais inocente, mais compatível com a idade e o temperamento da aristocrata, e com o fato de que eles estavam em uma casa ainda acordada e cheia de servos nas proximidades.

O próprio Andriy, aliás, também está um pouco questionador demais. Ele é, de fato, um pouco mais sensível que seu pai e seu irmão; porém, ainda é um cossaco, ainda tem um temperamento aventureiro e impulsivo. Não se pode dizer que seja especialmente reflexivo, apenas reage aos acontecimentos que testemunha com um pouco mais de nuance e certeza dogmática que seus parentes. O Andriy do filme, porém, já questiona a guerra e o sofrimento dos inimigos muito antes que o do livro o faça, e isso retira um pouco da impulsividade e da reatividade que, inclusive, explicam seu comportamento ulterior.

Só por um zelo extremo, assinalo ainda as caras de “adolescentes da Netflix” dos rapazes que interpretam os filhos de Bulba. Não diria que são maus atores, talvez a falha tenha sido do departamento de maquiagem. Mas não parecem, de modo algum, rapazes de uns 20 anos, recém-saídos do seminário. É claro que a aparência das pessoas sofria mais com as agruras da vida, mas alguns traços juvenis se manteriam mesmo assim, traços dos quais não há sinal nos rostos trintões dos atores.

(O intérprete de Bulba, por outro lado, mantém exatamente a mesma aparência durante o filme todo, ignorando os saltos temporais de vinte anos entre algumas cenas). 

Mas nem tudo é crítica nesta resenha.

O filme tem suas belezas, em especial na filmagem em si, e suas sacadas interessantes como misturar ao enredo referências a outras obras icônicas da arte russa. É o tipo de desvio do original que não o fere, mas enriquece, e o único tipo que se deveria admitir em uma adaptação de obra-prima literária que arrogue para si tal título.


Cossacos escrevem carta ao Sultão turco. Iliá Repin, 1891.


UMA LUPA SOBRE A OBRA

 

A Ilíada


Tarás Bulba é uma novela épica. A influência da Ilíada sobre ela é ressaltada pelos críticos: Gógol notoriamente apreciava Homero. E como li a Ilíada logo após ter relido Tarás Bulba, os paralelos foram detectados com facilidade.

Esses paralelos começam nos capítulos de batalha de Tarás Bulba, muito semelhantes à maior parte dos cantos da Ilíada, que são capítulos de batalha.

Ambas as obras contam com descrições abertas e gráficas de violência, um tanto maiores na Ilíada, é verdade. Gógol, cidadão do século XIX, poupa os leitores, por exemplo, da descrição das torturas a que foram submetidos os cossacos aprisionados pelo inimigo. Mas a descrição de cabeças chutadas e bebês erguidos na ponta de lanças permanece por ali. As ameaças mentais de Bulba à nobre polonesa que “desviou” seu filho são cruentas e cruéis como o destino que Andrômaca, esposa de Heitor, relata saber que lhe está reservado, quando Troia cair, e tão descaradas como a casualidade com que os gregos falam em estuprar as “troianas de fundas cinturas”.

Ambas as obras contam com eventos repetidos da mesma maneira, mudando apenas o agente e o objeto da ação. Há pequenas inserções da história pregressa de algum personagem no momento da sua morte, e, por vezes, eles fazem pequenos discursos épicos enquanto agonizam. Consta, por vezes, a reação dos deuses a essas mortes. Eis, por exemplo, o seguinte trecho, com algumas dessas características:

Cossacos, cossacos! Não entreguem a flor do seu exército! Já tinham cercado Kukubenko, já restavam apenas sete homens de toda a choça de Nezamáikov; até esses já se desvencilhavam com esforço; a roupa deles já estava ficando ensanguentada. O próprio Tarás, vendo a desgraça dele, se apressou ao resgate. Mas os cossacos chegaram tarde: uma lança já lograra afundar sob seu coração antes que os inimigos que o cercavam fossem enxotados. Ele se inclinou quietinho para os braços dos cossacos que o apanhavam, e o sangue jovem jorrou feito um regato, semelhante a um vinho caro que servos descuidados estavam trazendo da adega em um vaso de vidro, mas escorregaram ali mesmo à entrada e despedaçaram o garrafão caro: o vinho se derramou todo por terra, e levou as mãos à cabeça o dono que acorrera, que o guardava para o melhor evento da sua vida, para que, se Deus lhe prouvesse reencontrar na velhice um colega da juventude, ele pudesse então recordar com o colega um tempo diferente, passado, quando o homem se divertia melhor e de outro jeito... Kukubenko olhou ao redor e proferiu: “Agradeço a Deus por eu ter sido levado a morrer perante os seus olhos, camaradas! Que depois de nós vivam uns ainda melhores que nós, e a Terra Russa, amada por Cristo, se sobressaia ainda mais!” E a alma jovem decolou. Os anjos a ergueram por baixo dos braços e a carregaram para os céus. Será bom para ele lá. “Assenta-te à minha direita, Kukubenko!” lhe dirá Cristo. “Tu não traíste a camaradagem, não cometeste ato vil, não entregaste um homem na desgraça, guardaste e protegeste a minha igreja”. A morte de Kukubenko entristeceu todos. As fileiras cossacas já rareavam bastante; muitos, muitos bravos já faltavam à contagem; mas os cossacos ainda permaneciam de pé e se mantinham firmes.

E no canto 5 da Ilíada, lemos:

 

Assim falou, rezando; e ouviu-o Palas Atena, tornando-lhe

os membros mais leves, mais leves os pés e as mãos.

Postando-se junto dele, dirigiu-lhe palavras apetrechadas de asas:

«Tem coragem, ó Diomedes, e luta contra os Troianos!

[125] No teu peito eu coloquei a força de teu pai — a força

inquebrantável que tinha Tideu, cavaleiro portador de escudo.

E tirei da frente dos teus olhos a bruma que lá pairava,

para que conheças bem quem é deus e quem é homem.

Por isso se vier ao teu encontro algum deus para te testar,

[130] não combatas de modo algum contra os outros deuses

imortais, a não ser que Afrodite, filha de Zeus,

entre na refrega: a ela poderás ferir com o bronze afiado.»

 

Tendo assim falado, partiu Atena de olhos garços.

O Tidida voltou de novo a imiscuir-se entre os combatentes

[135] da frente; e embora antes estivesse desejoso de combater os Troianos,

agora sentia três vezes mais força: como o leão,

ao qual no campo o pastor feriu, quando saltou por cima

da vedação do curral das ovelhas, mas não venceu;

avivou-lhe antes a força, mas de seguida não lhe faz frente,

[140] metendo-se dentro dos estábulos, o rebanho aterrorizado:

e empilhadas ficam as ovelhas, umas ao lado das outras;

porém o leão salta na sua fúria para fora do curral —

assim no meio dos Troianos se imiscuía o possante Diomedes.

 

Foi então que matou Astínoo e Hipíron, pastor do povo:

[145] a um atingiu por cima do mamilo com a lança de brônzea ponta;

ao outro desferiu com a espada possante um golpe no ombro,

decepando-lhe o ombro do pescoço e das costas. Deixou-os

onde estavam e pôs-se a perseguir Abante e Poliido,

filhos de Euridamante, idoso intérprete de sonhos.

[150] Porém não regressaram, para o ancião lhes interpretar

os sonhos: ambos foram mortos pelo possante Diomedes.

Depois lançou-se contra Xanto e Tóon, filhos de Fénops,

ambos bem amados. Ao pai oprimia a dolorosa velhice,

e não gerou outro filho a quem deixar os seus haveres.

[155] Ali os matou Diomedes, privando-os a ambos da vida

amada, deixando ao pai deles o pranto e o luto doloroso,

uma vez que não permaneceram vivos para que o pai os recebesse

no seu regresso; pelo que outros familiares dividiram a fortuna.


Assim como Homero cantava para os gregos contemporâneos um relato de seu passado remoto, do tempo dos heróis, Gógol canta para os ucranianos de seu tempo uma ficção histórica inspirada em eventos reais de tempos idos, de dois séculos antes, do tempo dos bravos. Ambas são histórias sobre cercos a cidades muradas e guerras de povos aparentados. Ambas contam, no centro da ação, com a figura de um pai e dois de seus filhos — Príamo, Heitor e Páris (também chamado de Alexandre) — ou de um pai e seus dois filhos — Tarás, Ostáp e Andriy. Mesmo que a Ilíada seja, oficialmente, sobre a cólera de Aquiles, é Heitor que mais brilha no centro dela.

E na Ilíada de Gógol, Tarás faz duplo papel: ele é Aquiles, em suas proporções heroicas (amassando o cavalo sob o peso de seus 330 kg, precisando de quinze ou vinte homens para aprisiona-lo, na velhice e na exaustão), na presença decisiva para as vitórias, e, mais tarde, na revolta contra seus comandantes, no afastamento deles, e em sua cólera vingativa que, em última instância, o levará à ruína. Mas também é Príamo, descendo de sua dignidade, subornando e se humilhando para tentar resgatar o filho valoroso.

Ostáp, tal como Heitor, é o militar bravo, o comandante excelente, o homem irrepreensível segundo as leis da sua sociedade. Não sabemos se Heitor era o primogênito de Príamo, mas ele certamente tem aquele jeito de irmão mais velho que assume a responsabilidade. Heitor e Ostáp se destacam pela lealdade e integridade, e fazem a guerra porque a guerra é o que os homens de sua época faziam. Talvez não a fizessem se tivessem nascido em outros ambientes. Podem até cometer atos que, tomados isoladamente, são censuráveis, mas esses atos nunca violam a moral comum de seu povo e as leis da sua consciência — consciência essa regulada pela referida moral comum, haja vista que ambos são um pouco limitados na percepção e na sensibilidade, às vezes.

E Andriy é Páris, o filho que trai os seus por causa de uma mulher, seja passando para o lado do adversário, como Andriy, ou atraindo a desgraça para sua cidade ao adulterar com a esposa de um rei militar, como Páris.

Mas a sobreposição entre os dois não é perfeita. Páris nos é apresentado como um caráter odioso, covarde, que não se aproxima da luta se não for empurrado, se entrega aos prazeres no meio da destruição, se recusa a renunciar aos próprios privilégios, concedidos por Afrodite, para salvar toda a sua cidade, cujos defensores — inclusive os irmãos dele — morrem aos borbotões diariamente, e cuja rotina dos tempos de paz já está suspensa há anos.



Andriy não é um personagem tão negativo. É um bravo: até mesmo seu pai o admite, no momento do fim. É um cossaco de verdade. Um tolo, talvez, impulsivo com certeza, mas também acessível à comoção, à compaixão. Páris não se compadece nem dos seus; Andriy se compadece do inimigo. As cenas com a entrada dele na cidade e sua conversa com a amada estão entre as mais marcantes do livro. Na conversa dele com a tártara, vê-se que ele não entendia, até então, a amplitude da desgraça humanitária que estava ajudando a causar, e que se descortinou aos olhos dele naquele momento.

Não é essa desgraça que o faz mudar de lado, porém, mas novo impulso: a paixão. Uma paixão que, embora compartilhe traços de luxúria com a de Páris, não se resume a esta e tem aquele quê de cavalheirismo medieval que é estranho à Antiguidade. Se o amor de Andriy pela polonesa seria duradouro, quem vai saber? A forma como o encontro com o pai o impactou mais tarde sinaliza que, talvez, Andriy revisse suas prioridades após um tempo. Mas, no momento do segundo encontro entre ele e sua amada, o sentimento existia e era de todo coração. Ao se deparar com ele, Andriy se joga inteiro nesse amor, como em tudo o que faz, em cada pequena incursão que vai, e decide seu destino em uma das cenas mais bonitas e tristes da literatura:

Mas nenhum deles escutou quais ‘nossos’ entraram na cidade, o que trouxeram consigo e que zaporogos amarraram. Cheio de sentimentos que não se experimenta na Terra, Andriy beijou esses lábios perfumados que se colaram à face dele, e os lábios perfumados não deixaram de responder. Repercutiram a mesma coisa, e nesse beijo mútuo-fundente, sentiu-se aquilo que só se concede à pessoa sentir uma vez na vida.
E pereceu o cossaco! Estava perdido para toda a cavalaria cossaca! Não reveria nem a Zaporíjia, nem os sítios do pai, nem a igreja de Deus! A Ucrânia também não reveria o mais bravo dos filhos que tinham se encarregado de protegê-la. O velho Tarás arrancará uma mecha grisalha do topete e amaldiçoará o dia e a hora em que gerou tal filho para sua própria vergonha...

Andriy é um personagem ambíguo; é difícil condená-lo, e é difícil absolve-lo também. A traição aos seus é algo que causa repulsa nos seres humanos, mesmo quando o que a motiva é uma causa nobre. Mesmo quando, como no caso, os “seus” são os invasores e os vilões. E ainda assim, é impossível reprová-lo por se deixar comover por tudo o que viu e ouviu na noite em que tomou essa decisão. Quem não ficaria chocado ao contemplar as consequências dos seus próprios atos, ao ver como eles estavam destruindo um ser amado e inocente, ao enxergar subitamente nos “inimigos da fé” pessoas que cultuavam o mesmo Deus e a ele também se dirigiam pedindo coragem, resistência e livramento? Livramento, diga-se, das mãos dos que diziam estar lutando em defesa da fé neste mesmo Deus.

Andriy já entra em Dúbno atravessando uma igreja católica, em que se depara com esta cena:

...e eles se viram sob as abóbadas altas e escuras da igreja do monastério. Junto a um dos altares, lotado de candelabros e velas altos, um sacerdote estava ajoelhado e rezava baixinho. Em torno dele, de ambos os lados, estavam também ajoelhados dois jovens coristas de mantos lilases com sobrepelizes brancas rendadas por cima e turíbulos nas mãos. Ele rezava pelo envio de um milagre: pela salvação da cidade, pelo fortalecimento do ânimo em queda, pelo envio de paciência, pelo afastamento do tentador, que não parava de sussurrar murmuração e um lamento covarde e acanhado contra as infelicidades terrenas. Algumas mulheres, semelhantes a fantasmas, estavam ajoelhadas, apoiadas e com as cabeças extenuadas totalmente deitadas nos encostos das cadeiras e bancos de madeira escuros diante delas; alguns homens, recostados às colunas e pilastras sobre as quais se reclinavam as abóbadas laterais, também estavam tristemente ajoelhados. O vitral colorido que ficava sobre o altar se iluminou com o rubor rosado da manhã, e, dele, caíram no chão círculos de luz azuis-claros, amarelos e de outras cores, que iluminaram subitamente a igreja escura. Todo o altar, no seu recôncavo distante, apareceu de repente em um resplendor; a fumaça dos turíbulos parou no ar como uma nuvem iluminada com as cores do arco-íris. Andriy olhava não sem espanto do seu canto escuro para o milagre produzido pela luz. Nessa hora, o rugido majestoso do órgão encheu de repente toda a igreja. Foi se tornando cada vez mais denso, cresceu muito, passou a uns retumbos de trovão e depois, transformando-se de repente em uma música celestial, chegou voando alto sob as abóbadas com seus sons cantantes que lembravam vozes finas de donzela, e depois se transformou de novo em rugido denso e trovão e silenciou. E os retumbos de trovão ainda passaram muito tempo a voar sob as abóbadas, tremendo, e Andriy se admirava boquiaberto da música majestosa.

 

Dúbno é uma Ílion que se salvou. Também em Ilíada os troianos sacrificam aos deuses e pedem sua intercessão, mas seus sacrifícios não são aceitos, pois feitos a deuses hostis a eles, e porque o destino da cidade já estava decidido.

O milagre pedido pelos poloneses, porém, de certa forma se realizou: o inimigo foi rechaçado, a cidade foi salva. E é extremamente interessante que esse seja o caso, considerando que os cossacos representam, no livro, os defensores da fé ortodoxa.

É como se o autor reconhecesse que, em última instância, Deus escuta o oprimido quando este está submetido à opressão, mesmo que esse oprimido seja seu inimigo. E mesmo que ele não seja oprimido em todas as circunstâncias: os mesmos poloneses que eram as vítimas em Dúbno, em um contexto mais amplo, eram os opressores naquele período, mantinham os ucranianos em situação de dominação — com condições conciliadoras e paz religiosa artificial, mas ainda assim dominados.

Gógol, ele mesmo um ortodoxo roxo que foi se radicalizando à medida que envelheceu, não questiona o título de defensores da fé ortodoxa arrogado pelos cossacos a si mesmos, e não os critica expressamente por defendê-la pela via militar. Por isso, é tanto mais interessante a presença desse detalhe na cena transcrita acima.

Os cossacos


Gógol não critica os cossacos enquanto defensores da fé ortodoxa, tampouco os condena e até justifica sua natureza rude — e a dos inimigos — como um fruto natural daquele século duro.

Não poupa, porém, nas tintas com que ilustra essa natureza rude e suas consequências. Sem listá-las em termos pedagógicos e julgadores, descreve as situações em detalhes tão ricos e emocionantes que não dá para não empatizar com as vítimas e perceber os defeitos dos protagonistas da história.


Primeiro, a situação das mulheres, sobre a qual dois trechos nos contam tudo o que precisamos saber. Três, se considerarmos o tratamento de Bulba às mulheres inimigas — mas me referia às cossacas. Conhecemos sua realidade na breve descrição da vida da esposa de Bulba, costurada à cena em que ela vela, sentada à cabeceira dos filhos e acariciando-os, ciosa de aproveitar cada segundo para olhar para eles, que logo lhe serão tirados de novo — e quem sabe se para sempre? Maltratada, física e afetivamente, desconsiderada, encolhida, precocemente envelhecida. Ela não ousa se opor aos desmandos do marido, apenas deposita sua esperança na volubilidade das ideias dele, quando influenciadas pelo álcool. Quando ele permanece firme no desígnio que a prejudica, ela se limita a se conformar e chorar e se agarrar silenciosamente aos filhos, até que a retiram do pescoço deles.

No entanto, se Bulba morresse, a veríamos como as mulheres dos cossacos falecidos, decerto igualmente sofredoras, sobre as quais Gógol diz que:

A coitadinha irá correndo todo dia ao bazar, agarrando-se a todos os que passarem, buscando identificar cada um deles com o olhar, para ver se um específico, o mais querido de todos, não está entre eles. Mas muitas tropas de tudo quanto é tipo passarão pela cidade, e nunca mais esse um específico, o mais querido de todos, estará entre eles.

Naquela sociedade altamente bélica, a vida com um homem era ruim, mas sem ele, era pior ainda. E os homens pareciam cientes disso, como se vê da atitude de Bulba em relação às mulheres, já mencionada alhures, e que representa a atitude cossaca geral em relação a elas, segundo a obra de Gógol.

Depois, há os judeus. O autor recai em estereótipos antissemitas ao descrevê-los: o judeu sujo, o judeu vil e obcecado por dinheiro. Descreve-os pelos olhos dos seus cossacos, cujas relações com os judeus eram regidas por um misto de hostilidade, desprezo e utilitarismo. Também há espaço para uma gota de admiração pelo tino dos judeus para se virar em situações adversas, nas quais se viam o tempo todo: eles viviam na vizinhança dos cossacos como, nas palavras do autor, “aqueles que se instalavam ao sopé do Vesúvio”, o vulcão que destruiu Pompeia. Eram atraídos para lá pela perspectiva de lucro fácil nos negócios, já que os cossacos, quando alegres, gastavam com liberalidade. Mas seu humor mudava como o vento, e depois eles não só tomavam de volta tudo o que tinham pago aos vendedores, como também lhes tiravam a vida. Realizavam pogroms quando lhes dava na telha, sob a alegação de que os judeus os oprimiam cobranças de dívidas e tributos. Como os judeus “mataram Cristo”, não mereciam respeito, podiam ser liquidados a qualquer momento. E esse pensamento não se restringia à cabeça dos cossacos: era compartilhado por poloneses, lituanos e os mercenários de outros países vistos em Tarás Bulba.

Gógol explica a volubilidade e a falta de orgulho e de integridade que atribui aos judeus pela extrema vulnerabilidade em que eles viviam. Todas as vezes em que aparecem no livro, são objeto de violência, estão prestes a sê-lo, ou escapam por pouco disso. Isso teria apurado seus instintos de sobrevivência, aumentando também sua inteligência — muito superior à dos cossacos, no livro — e poderia explicar até o estereotipado amor ao dinheiro: o dinheiro proporciona certa medida de segurança. Quem tem dinheiro ainda pode tentar oferecê-lo como resgate pela própria vida.

Mas esse mesmo amor ao dinheiro cede ante uma coisa: a gratidão e a lealdade. Essas qualidades aparecem em Iankel, em quem o autor sintetiza, mais de perto, as características que atribui ao povo judeu na obra. Iankel põe a própria vida em risco, bem como a de alguns amigos, para ajudar Bulba. O judeu de Gógol não cede sua lealdade a qualquer um; mas, uma vez que alguém tenha conquistado direito a ela pela gratidão, esse direito será sempre respeitado.

É, em escala menor, mas bastante intensa, a mesma qualidade que Bulba considera a qualidade máxima dos cossacos: a lealdade para com os camaradas. Que talvez seja uma das únicas qualidades dos cossacos, junto com a bravura temerária, uma liberalidade de ocasião e uma democracia orgulhosa e desengonçada. Sim, cada uma dessas qualidades vem com ressalvas.

A bravura dos cossacos raramente é acompanhada de cautela, exceto no que se refere às manobras militares em si. Mas eles se lançam em combates desnecessários e façanhas que ninguém pediu, porque o fim desejável de sua vida é ter os feitos cantados pelos bandurristas.

A liberalidade só dura enquanto eles têm algo no bolso — e têm algo no bolso porque saqueiam. Roubos internos na sua sociedade não são tolerados e recebem castigo brutal; roubar os outros, porém, não tem problema nenhum. E essa liberalidade, muitas vezes, significa praticar vícios tidos como virtudes cossacas, como a bebedeira.

Ora, uma democracia de bêbados é facilmente manipulável e difícil de levar a bons resultados. Mas os cossacos são muitos orgulhosos de sua liberdade e isonomia, bem como amantes dos seus ritos: é preciso que o atamã saiba quando falar como chefe e como colega, há hora certa para tirar o chapéu, e é preciso ser ortodoxo, trazer presentes dos saques para a igreja e frequentá-la aos domingos — reter suas normas morais, aí já é opcional, por vezes não recomendável. Mas, na qualidade de causa pela qual lutar e fonte de ritos e tradições, os cossacos amam sua igreja.

E amam seu código cossaco, amam suas leis rígidas, as ordens de seus chefes. Leis e ordens, porém, que comportam exceções: vemos isso mais de uma vez, no caso da ameaça do chefe de executar quem se embebedasse em campanha, da qual ele recua quando uma tropa inteira de fato se embebeda, causando a desgraça do acampamento; e na menção a um ladrão que ninguém teve coragem de matar a pauladas como o código de conduta prescrevia, em respeito a suas façanhas anteriores.

O amor dos cossacos à vida bruta, à vida corpórea e aos ritos e costumes como os governantes de seu lado espiritual talvez se deva ao fato de eles serem, em essência, povo. Povo comum, trabalhador, camponeses fugidos, bandidos fugidos, povo heterogêneo formado por integrantes de diversas nações — mas povo, simples povo.

Até seus nomes dão testemunho disso.

Nomes



É frequente na literatura de Gógol que os nomes tenham significado. Às vezes, isso dá um tom humorístico a certos trechos e é até utilizado em trocadilhos no corpo do texto.

Por exemplo, há em Tarás Bulba o cossaco Chilo, e “chilo” significa “sovela”, uma ferramenta usada para perfurar couro. Daí saiu este trecho do diálogo de um capítulo, em que os cossacos estão elegendo um novo kochevói, o comandante de todo o acampamento:

— Que Chilo seja o kochevói! — gritavam uns. — Ponham o Chilo de kochevói!
— Ponha a sovela (chilo) é nas suas costas! — gritava a multidão, xingando. — Que cossaco é ele, se andou roubando feito um tártaro, o filho de uma cadela?! Que o bêbado do Chilo vá pro inferno em um saco!

Os nomes dos cossacos, porém, não se prestam só a isso. Indicam, por vezes, sua profissão, apontando os instrumentos de trabalho (Dolotô, que significa formão; Remén, que significa “correia” ou “cinto”); em outras vezes, zombam de características físicas ou da personalidade. Eles são chamados uns pelos outros da mesma forma como se chamam companheiros de futebol ou colegas de boteco. Há o Barbado (Borodátiy), o Diabrete (Palývoda), o Mulher (Kobita), o Pão Sírio (Korj), o Torce-a-Boca (Zakrutygubá), o Champignon (Petcherítsa), o Verruga (Borodávka). Ler o livro no original, nesse aspecto, proporciona uma impressão que as traduções têm dificuldade de transpor, já que é preciso optar por conservar a característica de “povão” dos personagens, traduzindo seus nomes, ou conservar sua característica nacional, atrelada à língua deles, mantendo-os no original.

Por fim, há ainda os nomes e sobrenomes do próprio Bulba e seus filhos, que têm uma dimensão a mais de significado.

Ostáp e Andriy são versões ucranianas dos nomes Eustáquio (do grego eusthates, significa “firme, estável”) e André (do grego andreia, significa “coragem, hombridade”), respectivamente, ambos nomes de santos. Santo Eustáquio, de acordo com a tradição, era um general romano chamado Plácido que se converteu ao cristianismo, tomou o nome de Eustáquio no batismo, e, após suportar muitas perdas, ter sua família separada pelas circunstâncias e reunida novamente, foi morto em 118 d. C., cozido em um touro de bronze com a esposa e os dois filhos por se recusar a fazer um sacrifício pagão. Santo André, o Apóstolo, foi um dos doze discípulos de Cristo, irmão do apóstolo Pedro, discípulo de João Batista e o primeiro a ser chamado por Jesus para segui-lo. Mais tarde, foi adotado como santo patrono de Constantinopla (Bizâncio, atual Istambul), cuja igreja teria fundado, segundo a tradição. A igreja ortodoxa russa e ucraniana consideram também que ele tenha pregado aos citas, habitantes da região do Mar Negro, na época em que o santo viveu.

O sobrenome “Bulba” vem do latim bulbus, “bulbo”, e a palavra, incorporada no idioma ucraniano via polonês, designava, à época, a fruta pera, com conotações de “sólida, redonda, da terra”. O nome ucraniano Tarás, por outro lado, vem do grego tarassō, que significa “agitar, perturbar”, e, por associação, “rebelde”.

O protótipo do personagem é um cossaco real da época em que se passa a história, de origem tártaro-crimeana, falecido em 1639, chamado Tarás Fiodoróvitch ou Tarás Triassílo (de tri síly, ou “três forças”), entre outros nomes, que foi hétmane (i. e., comandante geral) dos cossacos não registrados a partir de 1629. Ele lutou pela libertação da Ucrânia do domínio polaco-lituano da República das Duas Nações e venceu os poloneses em 1630 em uma batalha noturna que ficou conhecida como Tarássova notch (“a noite de Tarás” ou “a noite do rebelde”).

Há quem ressalte o encontro do princípio grego e do princípio latino no personagem, devido à origem de seus nomes. Além disso, ressalta-se o aspecto popular, de bulbus, “da terra”, além de uma alusão à sua aparência, que representa a dimensão corpórea, material de Tarás, e contrasta com o “rebelde” do seu prenome, que aponta para sua função e sua disposição psicológica.

De fato, Tarás agita tudo, do começo ao fim, com consequências trágicas para si próprio, e dando origem a uma história que merece ser lida, relida e apreciada ainda por muitas gerações por vir.


***

  1. As citações de Tarás Bulba foram traduzidas do original.
  2. A citação de Ilíada foi retirada de HOMERO. Ilíada. Trad. Frederico Lourenço. Lisboa: Editora Quetzal, 2019.
  3. As ilustrações que não contêm legenda são de E. Kibrik, 1971.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Bottom Ad [Post Page]