BLOG PARA DIVULGAÇÃO DA LITERATURA RUSSA AOS FALANTES DE LÍNGUA PORTUGUESA.

Post Page Advertisement [Top]



Não sou muito de participar de desafios literários, mas não poderia ficar de fora de um que eu mesma inventei. O desafio “Um ano de literatura russa” da página Literatura Russa para Brasileiros trouxe um calendário com 12 dos autores russos mais populares e traduzidos. A cada mês, o participante deve escolher uma obra do respectivo autor para ler, nem que seja só um conto ou poema. O objetivo é apresentar a literatura russa a novos leitores e ampliar os horizontes daqueles que já a leem, mas conhecem apenas um ou dois escritores. E os velhos de guerra como eu podem aproveitar a oportunidade para progredir no desbravamento das próprias intermináveis listas de leituras.

O autor de janeiro era Anton Tchékhov, de quem eu lera apenas a peça “As três irmãs” até então. A peça não me agradou muito. Disseram-me que isso não era incomum (parece que o Tolstói não suportava as peças do Tchékhov), e que eu devia experimentar os contos, que era onde ele realmente se destacava.

Foi o que fiz. Peguei na biblioteca a coletânea “Contos” da editora Nova Cultural, contendo os seguintes textos, traduzidos por Boris Schnaiderman: O beijo, A crise, Kaschtanka, Viérotchka, Uma história enfadonha e Enfermaria n. 6.

Segue uma breve sinopse de cada um:

O beijo


Numa parada que seu batalhão fez na casa de um nobre para uma visita social, um oficial que não era dos mais bonitões ou desejáveis recebe um beijo de uma desconhecida por ter entrado acidentalmente num quarto escuro onde ela esperava o amante. A partir desse incidente, ele cria uma sucessão de castelos no ar, projetando para si felicidades de que antes não se achava merecedor, mesmo sabendo da esmagadora falta de base desses castelos, já que o beijo originalmente nem era para ele.

A crise


Um estudante universitário visita pela primeira vez a uma zona com seus amigos. Ele vai meio que levado à força — ou antes, à força da masculinidade tóxica — e, incapaz de aproveitar o passeio, não consegue se livrar das lembranças depois. A realidade não é como ele romanticamente a pintara, mas, por outros motivos, o rapaz permanece tão afligido pela indignação e pela compaixão que tem um surto que o leva à beira do suicídio. 

Uma das duas: ou temos apenas a impressão de que a prostituição é um mal e exageramos, ou, se a prostituição é realmente um mal da gravidade que se costuma atribuir-lhe, então estes meus caros amigos são donos de escravos, violadores e assassinos, como aqueles habitantes da Síria e do Cairo, que aparecem em desenhos na “Seara”. Agora, estão cantando, dão gargalhadas, fazem comentários judiciosos, mas não foram eles que ainda há pouco exploraram a fome alheia, a ignorância, a inteligência embotada? Foram eles, eu testemunhei. Para que então a sua humanidade, a medicina, a pintura? As ciências, as artes e os sentimentos desses celerados lembram-me o toucinho da anedota. Dois salteadores esfaquearam na floresta um mendigo; começando a dividir entre si a sua roupa, encontram no embornal um pedaço de toucinho de porco. ‘Isto vem muito a calhar’, disse um deles, ‘façamos uma merenda’. ‘Que é isso, como se pode?’, horrorizou-se o outro. ‘Então, você esqueceu que hoje é quarta-feira?’ Desistiram, pois de se alimentar. E, tendo esfaqueado um homem, deixaram a floresta certos de serem uns jejuadores. Assim estes aqui, tendo comprado mulheres, vão andando agora e pensam que são pintores e cientistas…


Os amigos o levam, então, a um psiquiatra, e ele, apesar de tomar os remédios para se pôr sob controle, observa com amarga ironia:

Talvez vocês todos tenham realmente razão! [...] Talvez! Mas tudo isto me parece surpreendente! O fato de eu ter cursado duas faculdades é considerado uma façanha; sou elevado às nuvens por ter escrito um trabalho que será abandonado e esquecido dentro de três anos, mas pelo fato de não poder falar das mulheres decaídas com o mesmo sangue-frio que destas cadeiras, levam-me para tratamento, chamam-me de louco, compadecem-se de mim!

Kaschtanka


Trata-se da história de uma cadelinha que se perde do dono e é adotada por um trabalhador circense que tem um número com animais. É contada do ponto de vista da Kaschtanka (que significa algo como “Castanhinha”, em referência à cor dela), e considerada uma história infantil. Quem gosta de animações antigas pode assistir esta versão da história produzida pelo estúdio russo Soyuzmultifilm em 1952 e legendado em português.

Viérotchka


Provavelmente o conto mais incômodo desta coletânea, porque retrata uma situação em que boa parte das pessoas já se viu em algum momento da vida — uma declaração de amor não correspondida. E a retrata do ponto de vista do rapaz que recebe a declaração, fazendo com que o leitor sinta o desconforto e o constrangimento dos dois lados, bem como a inevitabilidade e a insolubilidade de tais impasses.

Uma história enfadonha


Não tenho certeza se entendi sobre o que, propriamente, é essa história. Parece-me que sobre o sentido da vida — ou a ausência dele — e o quanto essa necessidade de sentido aflige os seres humanos. Nela, ouvimos ao narrador — um velho cientista e professor universitário — contar eventos de sua vida, contrapondo o antes ao estado doente, aborrecido e impaciente em que ele se encontra permanentemente na velhice. Percebe-se que, apesar do renome, do emprego estável e que lhe dá prazer, de ter se casado com a mulher que amava e gerado uma bela família, ele sente uma angústia existencial que a proximidade da morte — perceptível para um médico — só faz exacerbar.

Mas o que adianta? Somente um homem estreito ou enfurecido pode ocultar em si um sentimento mau contra gente comum, pelo fato de não serem heróis.

Junto à história dele, ele conta sobre sua filha adotiva, que pegou para criar extraoficialmente após o falecimento de um amigo. A moça, impressionável, artística e dotada de algum dinheiro, seguiu carreira de atriz, teve um filho com um amante, foi abandonada por ele, o filho morreu, e ela se decepcionou com tudo no mundo e se enterrou viva em um ócio quase completo. Ainda assim, é uma das poucas pessoas que o velho atualmente suporta, e os dois, com um terceiro amigo, passam várias noites jogando baralho e destilando veneno sobre o mundo ao redor para desafogar-se do amargor da vida. A história finda com a moça pedindo ao seu pai adotivo que lhe dê uma resposta capaz de apaziguar o sentimento de vazio que a preenche, e ele — após perceber que nunca foi, realmente, de grande ajuda para ela nos momentos em que ela mais precisou — vê-se incapaz de suprir tal necessidade, até porque não pode dar aos outros o que não possui.

Enfermaria n. 6


É um dos contos mais famosos do Tchékhov, apesar de, segundo as notas no final da coletânea, não agradar tanto o seu autor. Ele escreveu a um amigo que a achava chata por não conter subtrama amorosa. Na minha humilde opinião, o elemento romântico não faz a menor falta, e o conto é o melhor do livro, remetendo vagamente a “O alienista” de Machado de Assis.

A enfermaria do título é uma ala de um hospital rural, cujo médico responsável, dono de uma personalidade acomodada e passiva, deixou entregue à corrupção dos enfermeiros e a todos os outros percalços que impediam o nosocômio de funcionar adequadamente. A ala em questão consiste em um pequeno galpão isolado do prédio principal em que são trancafiados cidadãos diagnosticados com doenças mentais. E esse é todo o tratamento que eles recebem: uma vez “internados”, ali, podem dizer adeus à civilização. O guarda, um ignorantão que está mais para carcereiro, se encarrega fielmente de impedir que eles não voltem a importunar a cidade — exceto um dos doentes, que ele permite ir mendigar e para depois confiscar as esmolas recebidas.

O médico não tem ciência desses abusos porque não procura saber. Há anos que ele não visita a enfermaria n. 6. Faz seu trabalho médio e, de noite, mergulha na leitura e nas conversas com a única pessoa mais próxima de intelectual que ele consegue achar para uma amizade nas redondezas, e que mesmo assim não o satisfaz muito.

Certo dia, ao passar por acaso pela enfermaria, ele testemunha algum incidente e acaba conhecendo o doente mais novo trazido para o local, um jovem esquizofrênico, que desenvolveu a doença (ou manifestou-a) após uma longa série de tragédias desabar em sua vida, inclusive dissipando toda a sua família. Para sua surpresa, o médico descobre no rapaz um intelectual, que outrora tivera tanto prazer na leitura quanto o próprio médico, apesar de as vidas de ambos terem criado mentalidades muito diferentes em cada um. Enquanto o doutor é passivo, e refugia no estoicismo sua consciência culpada por não produzir mudanças boas no mundo, o jovem é apaixonado, exaltado, precisa arranjar outra perspectiva para analisar o sofrimento — já que o experimentou tantas vezes na vida —, e por isso critica e desafia o profissional da saúde com seus argumentos.



Sentindo-se estimulado por esse interlocutor curioso, muito mais que pela gente tacanha da cidadezinha, o médico retorna várias vezes para conversar com ele por longos períodos — e acaba despertando a suspeita e a preocupação dos seus concidadãos. Realizam uma intervenção. Ele é afastado do trabalho, e parte em viagem com um amigo aposentado, terminando por aborrecer-se até com aquele amigo, ao testemunhar suas atitudes na viagem.

Voltando para casa, seu mau humor cresce, cresce, ele explode, e acaba colhendo os resultados se seus muitos anos de médico negligente.

As pessoas que têm uma relação oficial e profissional com o sofrimento alheio, por exemplo, juízes, policiais, médicos, com o correr do tempo ficam a tal ponto curtidas que, mesmo querendo, só podem tratar os seus clientes de maneira formal; por esse aspecto, não se distinguem em nada do mujique que mata carneiros e bezerros num fundo de quintal e não nota sequer o sangue.

De modo geral, sim, gostei muito mais dos contos do que da peça. Que eles são bem escritos, nem se discute, e que destrincham com habilidade os paradoxos, as hipocrisias e as inevitáveis perplexidades em que por vezes os humanos se encontram. Seus contos são incômodos e, por isso mesmo, necessários.

Para mim, “A crise” e “Enfermaria n. 6” foram os grandes destaques, que valeram a leitura do livro, embora “O beijo” e “Viérotchka” também tenham me provocado alguma comoção. Mas minha opinião de que Tchékhov é mais triste que todos os outros russos que já li  —  incluindo Mikhail Cholokhov com O Don silencioso  —  permanece e por isso sinto que não irei procurá-lo de novo na estante tão cedo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Bottom Ad [Post Page]