BLOG PARA DIVULGAÇÃO DA LITERATURA RUSSA AOS FALANTES DE LÍNGUA PORTUGUESA.

Post Page Advertisement [Top]




Talvez para redimir erros do passado, a editora Martin Claret lançou uma série de livros russos com traduções realizadas diretamente do original por Oleg Almeida. Dentre essas obras, a coleção Contos Russos reúne, em três tomos, contos e novelas de autores-chave da literatura russa: Karamzin, Púchkin, Gógol, etc. O volume II foi generosamente disponibilizado de graça pela editora no começo da pandemia, em formato e-book. E como ele continha histórias curtas de dois autores do desafio literário Um ano de literatura russa, veio a calhar quando os meses deles chegaram.

“Primeiro amor”, Ivan Turguêniev


Ivan Serguêievitch Turguêniev, retratado por Iliá Repin.


O livro conta a história de um adolescente de uns dezesseis anos, Vladímir Petróvitch, que se apaixona por uma moça de vinte, a lindíssima filha da princesa empobrecida que alugara a casinha anexa à de seus pais. Essa moça, bem consciente do efeito que exerce sobre os homens, flerta com vários deles e os mantém junto de si, para suas brincadeiras ou para que lhe prestem serviços. A quem ela dá seu coração, porém, é um mistério que choca o jovem Vladímir quando ele descobre a resposta.


Fazia um bom tempo que eu queria ler Primeiro amor, pois ele é um dos livros mais famosos de Turguêniev aqui, no Brasil, junto com Pais e filhos, que era a única obra dele que eu tinha lido até então. Tirando, é claro, o fenomenal artigo Hamlet e Dom Quixote, do qual eu sigo gostando mais do que da ficção do autor.

Não posso dizer que Turguêniev esteja entre meus escritores russos favoritos. A experiência de ler Pais e filhos, pelo pouco que lembro, foi agradável: não me empolgou tanto como Dostoiévski, Gógol ou Bulgákov, mas tampouco me chateou; os personagens eram vivos e deixaram uma impressão forte; qualquer dia releio para resenhar.

Primeiro amor, na minha opinião, conta com as mesmas qualidades de Pais e filhos, exceto que é mais chatinho. A história até que me prendeu, porque cada personagem é bem desenhado e consistente e as relações entre eles também fazem sentido. A mãe do protagonista, por exemplo, uma nobre bem típica de nariz um tanto empinado que fala metade de tudo o que diz em francês. Casada com um homem mais jovem e mais bonito que a desposou por interesse, passa os dias se torturando de ciúme do marido, a ponto de até negligenciar o filho. Entende-se, então, por que o filho gosta mais do pai, que pelo menos de vez em quando lhe demonstra algum afeto, e reluz elegância e uma independência que se entrelaça com o egoísmo. Ele mesmo resume sua filosofia assim:

Apanha, tu mesmo, o que puderes, porém não deixes que te apanhem; pertencer a si próprio, eis toda a manha da vida.

A mocinha do livro, Zinaída, é uma coquete de marca maior; no entanto, outro lado dela se revela quando é “domada”; quase uma sofredora, como outras heroínas de livros russos.

Não; não posso amar a quem tenho de olhar de cima para baixo. Preciso de um homem que me arrebente…

Também são bem vívidos os personagens secundários, isto é, a mãe de Zinaída e seus admiradores, cada um a imagem estereotipada da classe que representa — o militar impulsivo, o poeta indiferente, o conde astuto… O médico, talvez, fuja um pouquinho do estereótipo, mas cumpre bem o papel de pessoa inteligente e que vê longe, atribuído a ele pelo autor.

Nenhum dos personagens, porém, me despertou especial simpatia. Talvez, por ser uma novela, eu tenha passado pouco tempo com eles, mas todos me pareceram mais desagradáveis do que agradáveis. O protagonista dá pena, mas essa pena é modulada porque ele é bobo demais, admira um pai que não merece e não enxerga a grande “revelação” que nós leitores podemos enxergar desde o primeiro encontro de Zinaída com seu conquistador. A mãe de Vladímir também é digna de pena, mas desvia nossa compaixão com o modo como negligencia o filho e olha os outros de cima. Sobre o pai do rapaz eu nem comento. A mãe de Zinaída é desleixada e só pensa em dinheiro e a própria Zinaída, leviana demais.

Claro que outro leitor pode ter uma percepção diferente de tudo isso. É interessante como falam sobre esse livro sobre uma boa retratação de um primeiro amor, e não está errado. Não é um amor bonito e romântico, no entanto, mas sim tosco e decepcionante, como costuma ser o primeiro amor da maioria dos meros mortais. Claro que não com as circunstâncias especiais que o pobre Vladímir tinha para lamentar; mas também elas poderiam ocorrer em qualquer lugar, e não “somente na Rússia”, como aparece no epílogo que Turguêniev escreveu para as edições estrangeiras da novela. A afirmação pode ter sido só uma tentativa de não ofender os estrangeiros com a imoralidade da situação retratada.

De todo modo, é uma história triste e bem escrita, do jeitão típico dos russos. E, ao que parece, tem inspiração autobiográfica. Talvez por isso o autor nunca tenha se casado; depois de um trauma desses, quem poderia culpá-lo?

“Lady Macbeth do distrito de Mtsensk”, Nikolai Leskov


Nikolai Semiónovitch Leskov, pintado por Aleksandr Kuznetsov.

Não poderiam ter escolhido uma novela mais diferente da primeira para completar o volume. Lady Macbeth do distrito de Mtsensk e Primeiro amor dividem um único elemento importante. De resto, é tudo diferente: aqui os personagens são mercadores e camponeses, não nobres, o ambiente é mais próximo da Rússia tradicional, medieval quase, do que da sociedade europeizada da capital, e, na verdade, há pouquíssimos traços de cultura na história. Todos são meio brutos e tudo se passa de forma mais crua, compatível com a corrente naturalista à qual se adequa a obra de Leskov.

A protagonista, Katerina Lvovna, é uma moça bonitinha casada com um mercador viúvo que tem o dobro da sua idade, com o qual ela vive no campo. Ela não tem filhos e tanto o marido, quanto o sogro idoso, que vive com eles, culpam-na pela infertilidade. Na há amor na relação, nem algo de interessante para fazer na casa, e Katerina com frequência fica sozinha, enquanto os homens se ausentam, às vezes por dias, para tratar de negócios.

Em uma dessas longas ausências do marido, ela está entediada observando os servos trabalharem no quintal, decide dar uma volta e se aproxima deles. Um camponês novo fora contratado: Serguei, um rapaz jovem e bonitão, cheio da lábia e com fama de mulherengo. Ele dá em cima da patroa respeitosamente, mais tarde invade o quarto dela e, com a lábia, vence a resistência da moça, e eles começam a ter um caso.

Tudo vai indo bem, até que o sogro pega Serguei saindo do quarto da amante no meio da noite, castiga o rapaz e o deixa trancado no porão, se preparando para castigar também a nora. E isso desencadeia uma série de crimes que Katerina comete, com ou sem a ajuda de Serguei, para poder viver livremente ali com seu amante, que ela promove à condição de dono da casa, na prática. A atrocidade sem paralelo de seus atos é o que, segundo o autor, rende-lhe o apelido de Lady Macbeth do distrito de Mtsensk, numa referência à personagem de Shakespeare que, em complô com o marido, se torna assassina por ambição.

O relato não se encerra nos crimes, mas inclui sua descoberta, julgamento e o caminho dos culpados para o exílio na Sibéria, onde deverão cumprir sua pena. Essa parte da história é tão ou mais impressionante que a primeira. A essa altura, Serguei já está enjoado de Katerina Lvovna, que o envolvera em tanta confusão; quer se livrar dela e se compraze em perturbá-la arranjando outras amantes entre as prisioneiras. Ele a perturba tanto, a humilha tanto que a tira do sério, levando-a a cometer o último de seus atos insanos.

A meu ver, a narrativa desse livro é mais atraente e dinâmica que a de Turguêniev, mais apta a provocar fortes emoções, de compadecimento a indignação e perplexidade.

Boa parte do livro se compõe de cenas entre Katerina e Serguei, e por isso eles são os personagens que temos mais oportunidade de conhecer. Os dois me deixaram com raiva, mas o Serguei mais do que a Katerina, pelo que ele fez com ela quando os dois já estavam derrotados e por tê-la incitado ao último e pior crime, usando uma conversinha macia e venenosa. E justo quando eu pensava que ele tinha se apiedado mais dessa vítima em específico do que ela! Dá para argumentar também que ele foi o causador de todas as desgraças, já que foi quem a seduziu, subiu ao quarto dela e tudo. Mas a verdade é que, se um não quer, dois não traem.

Katerina Lvovna, por seu turno, causou-me uma mistura de pena, horror e repulsa. A pena foi provocada propositalmente pelo autor, com seu relato inicial sobre como ela era infeliz na casa, confinada com dois idosos chatos que nem gostavam dela, e levando a culpa pela infertilidade do outro. É interessante que tudo o que o autor aponta nesse pano de fundo que ele estende como uma “defesa prévia” da personagem é verdadeiro, uma situação em que muitas mulheres se encontravam naquela época, e precisava ser anunciada e denunciada. Mas ela não é suficiente para amortecer a hediondez dos atos de Katerina. Se um ou dois dos crimes podem ser justificados pelo desespero, outros foram cuidadosamente planejados, e desfiguram a protagonista a nossos olhos.

Tanto Serguei quanto Katerina Lvovna provam-se egoístas contumazes, mas de formas diferentes. No caso dela, o egoísmo parece ter sido despertado por uma espécie de idolatria pelo amante, fruto do baldinho de atenção jogado por ele no incêndio de carência que a consumia. Então era um egoísmo estranho, misturado com abnegação. Tanto que, negando seus crimes a princípio, ela os admite assim que sabe que ele confessou também. Assim, ambos poderiam ir juntos para o “martírio”. E nessa febre idólatra, ela ficou sem sentimentos por qualquer um e qualquer coisa que não fosse seu ídolo, tornando-se uma pedra de gelo, um ser humano assustador.

O egoísmo de Serguei, porém, era diferente — puro, cru e malandro, covarde até. Que ele não amava Katerina é claro desde o começo. Ele a usou, não só sexualmente, mas para obter uma vida boa e como instrumento para alcançar seus próprios fins. Sim, porque se Serguei era ousado para cantar mocinhas, era pusilânime em outros aspectos e por isso mesmo se grudou a uma mulher de personalidade forte que podia fazer o trabalho sujo por ele. Gozou até o fim dos favores dela, do dinheiro dela. E quando ela passou a não poder lhe fornecer mais nada, ele a largou sem hesitar.

Outros personagens interessantes aparecem no final, com destaque para as duas moças prisioneiras, rivais de Katerina. Fiona, mulher muito terna, a amante de todos, lembrou-me muito a Geni da música do Chico Buarque. A outra mocinha, porém, materializa o estado de espírito que Leskov tão habilmente descreveu no trecho a seguir, do qual compartilhavam os demais prisioneiros e, principalmente, Serguei:

Tudo está horroroso ao seu redor: uma infinitude de lama, um céu cinza, uns salgueiros molhados, sem folhas, e nos seus galhos furcados, um corvo de penas eriçadas. O vento ora geme, ora se enfurece, ora se põe a uivar, a bramir. E nesses sons infernais, que laceram a alma e arrematam todo o horror do quadro, ouvem-se os conselhos da esposa do Jó bíblico: “Amaldiçoa o dia de teu nascimento e morre”.
O homem de condição simples entende perfeitamente isso e desencadeia então toda a sua simplicidade animalesca, começa a fazer besteiras, a torturar a si mesmo, a humilhar as pessoas e os sentimentos. Já por si só despojado de delicadeza, torna-se sobremaneira maldoso.

O final da história, embora sem surpreender, satisfez por ser totalmente plausível considerando o desenrolar dos acontecimentos e a condição psicológica dos envolvidos.

Considerando se tratar de uma obra naturalista, a descrição de todas as “sujeiras” é feita abertamente; o autor não chega a entrar em detalhes sexuais, mas narra mais das cenas do que era costumeiro no século XIX, e os crimes são narrados em detalhes. Não chega a ser repulsivo, porém, como O cortiço, de Aluísio Azevedo que, não sendo uma grande fã do naturalismo, lamento até hoje ter lido.

Outro ponto a destacar é o linguajar dos diálogos, que é bem característico do povo. Embora muitos autores russos usem esse recurso, Leskov era considerado “o mais russo dos russos” e sua experiência de vida — crescendo em vilas do interior, trabalhando na administração pública e no comércio — provera-lhe de material de observação para retratar muito bem os tipos populares.

Em suma, a obra é muito interessante, e cabe destacar que é possível ter contato com ela também na forma cinematográfica: o filme “Lady Macbeth” (2016) é uma adaptação da novela de Leskov, e obteve aprovação de 88% no Rotten Tomatoes.

Florence Pugh, interpretando Katherine Lester, a versão do filme para Katerina Lvovna.


Sobre a edição em si, preciso observar que não gostei muito da tradução. Muitas palavras obsoletas, construções de sintaxe esquisita, algumas vezes as frases ficam quase incompreensíveis. E, como já dei uma olhada em trabalhos do Oleg Almeida por outra editora, fico pensando se não foi falha na fase de preparação. Felizmente, porém, ambos os livros incluídos no volume existem em outras traduções, caso alguém prefira procurá-las.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Bottom Ad [Post Page]